Ilustração: Bia Leme

O primeiro adversário da democracia é a simplificação que reduz o plural a único, abrindo assim o caminho para o descomedimento” Tzvetan Todorov

O país tem visto recentemente um conjunto de ataques ao pluralismo e à liberdade de expressão. São situações preocupantes, porque representam a tentativa de impor um determinado padrão de julgamento moral ou político, excluindo outras visões de mundo.

Tomamos como exemplos desse tipo de ação o ataque à exposição “QueerMuseu”, no Santander Cultural, em Porto Alegre, e o ataque na Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP a um seminário sobre o centenário da Revolução Russa. Nos dois casos, os que defendiam a suspensão dos atos viam neles o cometimento de crimes. O grupo político MBL esteve envolvido nos dois episódios, defendendo o encerramento da exposição e a suspensão do seminário. Por outro lado, as instituições responsáveis pelos atos tiveram posturas absolutamente diferentes.

No caso da exposição “QueerMuseu”, grupos políticos conservadores acusavam as obras de fazerem apologia à pedofilia. Inundaram as redes sociais com um discurso de defesa da família. Mostravam obras descontextualizadas, criando uma espécie de pânico moral, angariando apoios.

A pressão infelizmente surtiu efeito. O banco financiador do Centro Cultural ficou preocupado com os reflexos dessa reação sobre a sua imagem e optou por suspender a exposição. Esse recuo da instituição alimentou a sanha autoritária dos críticos, que tentaram também, em outros Estados, constranger outras instituições culturais.

Na Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP, a realização pelo Diretório Central dos Estudantes e pela Associação de Docentes de um seminário sobre o centenário da Revolução Russa sofreu ferrenho ataque nas redes sociais pelo Movimento Brasil Livre – MBL e pelo Diretório Acadêmico. A seção pernambucana do grupo político publicou em seu perfil no Facebook um texto atacando a universidade por abrigar o evento que celebrava uma revolução que matou cristãos. A pressão sobre a instituição ficou maior quando o Diretório Acadêmico ameaçou a instituição, dando 5 dias para que ela cancelasse o evento.

A instituição reagiu, no entanto, reafirmando a sua natureza de universidade, espaço aberto a formas diversas de conhecimento, não estabelecendo, assim, temas proibidos. Fez, em comunicado oficial publicado nas redes sociais, uma afirmação da liberdade na instituição. Essa postura foi muito importante na resistência a essa tentativa autoritária de restringir a expressão do pluralismo. Aliás, estranho seria se em uma universidade, neste ano do centenário da Revolução Russa, não existissem eventos discutindo o acontecimento que determinou os rumos do mundo no século XX.

Os dois casos narrados envolvem a liberdade de expressão. No primeiro caso, está em jogo a liberdade de manifestação artística, cujo exercício não pode depender de uma autorização baseada em parâmetros morais dos apreciadores. No segundo caso, está envolvida uma forma mais genérica da liberdade de expressão e, em algum grau, de liberdade de cátedra, sendo livre aos que estudam, ensinam ou pesquisam na instituição a escolha de temas a serem discutidos e da forma como abordarão esses temas.

Os discursos dos acusadores estavam cheios de referências religiosas. Mas não se pode atribuir esses ataques à religião. A maioria das pessoas com sentimento religioso aceita e defende o pluralismo. A liberdade religiosa é uma das mais importantes bases do Estado moderno. Quando há associação entre opção religiosa e ataque ao pluralismo, geralmente há, por trás, líderes que manipulam o discurso religioso, transformando-o em álibi para fomentar o ódio.

Parece existir, por outro lado, um uso político do discurso conversador, com objetivo eleitoral. O sentimento conservador é arraigado em nossa sociedade e grupos políticos testam, nesses ataques, o alcance de certos discursos. Esses episódios lançam luzes sobre como deve ser o debate político eleitoral no ano que vem.

Aos defensores da democracia e das liberdades, resta o dever de resistir e reafirmar pilares da democracia constitucional que estão em xeque. A liberdade de expressão não é negociável. Nos dois casos aqui abordados, a postura não autoritária dos que divergem dos conteúdos dos atos deveria ser a de não comparecer. Combatê-los, exigindo o fechamento da exposição ou a suspensão do seminário significa tentar impor sua visão de mundo, sufocando a manifestação da diversidade.