Ilustração: Caio Borges

Dois episódios envolvendo liberdade de expressão e preconceito contra homossexuais ocuparam as manchetes dos principais jornais do pais nas últimas semanas. Entre eles se pode constatar algumas fortes semelhanças, mas também importantes diferenças para a compreensão do difícil tema dos limites da liberdade de expressão.

O primeiro envolveu o cancelamento de uma exposição de “arte LGBT” no museu do Santander na cidade de Porto Alegre (Queermuseu: cartografia da diferença na arte brasileira). A decisão do banco foi antecedida por protestos de grupos e pessoas – sendo um dos mais salientes o MBL (Movimento Brasil Livre)  – contra a exposição, por eles considerada indecente, pornográfica, apologética da cultura gay e da depravação. A decisão da direção do banco provocou também uma dura resposta do curador da exposição. Parte relevante e ruidosa da opinião pública se mobilizou na mídia e nas redes sociais para repudiar o preconceito dos ataques sofridos pela exposição, bem como a tibieza dos diretores do banco responsáveis pelo cancelamento. Cartazes carregados por manifestantes protestaram contra a “censura” preconceituosa à arte e aos homossexuais.

O segundo episódio que gerou intensa repercussão nas mídias sociais foi a publicação da decisão liminar em ação popular proposta com o objetivo de suspender os efeitos da Resolução 001/1999, que estabeleceu normas de atuação para psicólogos em questões relacionadas à orientação sexual. A decisão do juiz federal Waldemar Claudio de Carvalho deferiu em parte o pedido liminar e determinou ao “Conselho Federal de Psicologia que não interprete-a (a Resolução referida) de modo a impedir os psicólogos de promoverem estudos ou atendimento profissional, de forma reservada, pertinente à (re) orientação sexual, garantindo-lhes, assim, a plena liberdade científica acerca da matéria, sem qualquer censura ou necessidade de licença prévia do CFP [Conselho Federal de Psicologia], em razão do disposto no art. 5º., inciso IX, da Constituição de 1988” (“IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”). Foi grande a reação de intelectuais e da mídia contra a decisão usualmente descrita como autorizadora da pratica da cura gay amplamente reprovada pela comunidade cientifica formada por psicólogos e psiquiatras.

Pensemos primeiro nas semelhanças. O primeiro aspecto a destacar se refere ao indisfarçável preconceito existente nas posições homofóbicas pressupostas nas reações dos críticos da exposição de Porto Alegre e na argumentação dos defensores da “cura gay” que festejaram a decisão do juiz federal de Brasília.

Outra semelhança curiosa reside na alegação de que tanto na decisão do banco Santander de cancelar a exposição, como na tentativa de impedir a livre expressão de ideias sobre o direcionamento sexual dos indivíduos haverá a prática da censura. Medidas judiciais foram tomadas visando impedir o cancelamento da exposição do QueerMuseu, sob a alegação de que a suspensão fortaleceria ideias preconceituosas na sociedade contra a comunidade LGBT. Críticos da decisão sobre a resolução 001/99 do CFP também alegaram que “autorizar a cura gay” iria fomentar o preconceito, razão pela qual deveria ser mantida (diante da suposição de que teria sido cancelada pelo juiz), vedando-se tal prática.  A bandeira da censura também foi usada para atacar a atitude do banco Santander.

Mas afinal, onde reside a censura? E o que há de incomum nos episódios? Em primeiro lugar, é importante destacar que no caso do QueerMuseu, um patrocinador privado cancelou uma exposição. Deverá responder pelos efeitos eventualmente decorrentes da rescisão contratual pelo banco. Divulgou-se a notícia de que a exposição teria contado com 800 mil reais do Santander, que seriam abatidos de impostos através da Lei Rouanet. O banco, porém, teria devolvido o valor aos cofres públicos.

Podemos afirmar também que a decisão é reprovável do ponto de vista moral, estético e político. Contudo, é difícil imaginar que ela seria proibida do ponto de vista do direito. Também o posicionamento dos críticos da exposição me parece perfeitamente protegido pelo direito a sua liberdade de expressão. Afinal, por que não se poderia criticar a arte ou os comportamentos sociais que lhes parecem negativos ou errados. Daí não se segue o endosso a tais opiniões, mas tão somente o reconhecimento de seu direito de expressá-las. Pelo idêntico motivo, a “censura” (aqui entendida como reprovação) pública e política da decisão do banco Santander reveste-se da mais plena legitimidade e garantia constitucional.

Já o caso relativo a sentença “que teria autorizado a cura gay” envolve maiores desafios teóricos. Para entendê-los é importante destacar alguns pontos. Em primeiro lugar, deixo de lado a questão processual levantada pela Defensoria Pública da União (DPU) relativa a existência de identidade de objeto com a ação proposta pelo MPF em outra oportunidade, também combatendo a mencionada resolução do CFP (Apelação Cível n. 0018794-17.2011.4.02.5101 7ª Turma, Rel. Des. Federal Sérgio Schwaitzer, unânime, DJe 11/07/2016. Transitada em julgado em 30/09/2016). Esta questão processual não afeta o mérito da ação, sobre o qual me limitarei.

Em segundo lugar, é importante destacar que a resolução atacada contém diversos dispositivos, e nem todos se justificam pelos mesmos fundamentos. O texto Resolução do CFP n° 001/1999 é breve e enuncia as seguintes diretivas:

CONSIDERANDO que a Psicologia pode e deve contribuir com seu conhecimento para o esclarecimento sobre as questões da sexualidade, permitindo a superação de preconceitos e discriminações;

RESOLVE:

Art. 1° – Os psicólogos atuarão segundo os princípios éticos da profissão notadamente aqueles que disciplinam a não discriminação e a promoção e bem-estar das pessoas e da humanidade.

Art. 2° – Os psicólogos deverão contribuir, com seu conhecimento, para uma reflexão sobre o preconceito e o desaparecimento de discriminações e estigmatizações contra aqueles que apresentam comportamentos ou práticas homoeróticas.

Art. 3° – os psicólogos não exercerão qualquer ação que favoreça a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas, nem adotarão ação coercitiva tendente a orientar homossexuais para tratamentos não solicitados.

Parágrafo único – Os psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades

Art. 4°  – Os psicólogos não se pronunciarão, nem participarão de pronunciamentos públicos, nos meios de comunicação de massa, de modo a reforçar os preconceitos sociais existentes em relação aos homossexuais como portadores de qualquer desordem psíquica

(…) Brasília, 22 de março de 1999.

O magistrado federal em sua decisão destacou em primeiro lugar a constitucionalidade da resolução.  Afirmou: “Conforme se pode ver, a norma em questão, em linhas gerais, não ofende os princípios maiores da Constituição. Apenas alguns de seus dispositivos, quando e se mal interpretados, podem levar à equivocada hermenêutica no sentido de se considerar vedado ao psicólogo realizar qualquer estudo ou atendimento relacionados à orientação ou reorientação sexual.”  Em outras, palavras, em tese a resolução não seria inconstitucional. Contudo, a sua equivocada interpretação poderia produzir uma pratica violadora da CF. Por tal, motivo, entendeu que “a fim de interpretar a citada regra em conformidade com a Constituição, a melhor hermenêutica a ser conferida àquela resolução deve ser aquela no sentido de não privar o psicólogo de estudar ou atender àqueles que, voluntariamente, venham em busca de orientação acerca de sua sexualidade, sem qualquer forma de censura preconceito ou discriminação. Até porque o tema é complexo e exige aprofundamento científico necessário”.

Por este motivo, entendeu o juiz que parte da resolução, estaria em desacordo com o princípio da liberdade científica e de manifestação e especialmente aquela que contem disposição “no sentido de proibir o aprofundamento dos estudos científicos relacionados à (re) orientação sexual, afetando, assim, a liberdade científica do País e, por consequência, seu patrimônio cultural, na medida em que impede e inviabiliza a investigação de aspecto importantíssimo da psicologia, qual seja, a sexualidade humana.

Em sua parte final e dispositiva, a decisão garantiu a realização de dois tipos de ação:  1- “a realização de aprofundamento de estudos científicos” e 2 –  “o atendimento profissional, de forma reservada, pertinente à (re)orientação sexual”.

Apesar de não ter sido objeto precípuo da análise da sentença, caberia também destacar que a resolução se referia também a uma terceira categoria de ação, a saber, (3) “a manifestação pública”, ao dispor que: “Art 4°- Os psicólogos não se pronunciarão, nem participarão de pronunciamentos públicos, nos meios de comunicação de massa, de modo a reforçar os preconceitos sociais existentes em relação aos homossexuais como portadores de qualquer desordem psíquica”. Ela proibia expressamente um determinado tipo de pronunciamento público em razão de seu conteúdo.

Acredito que neste caso temos três situações distintas a considerar. Em primeiro lugar, parece óbvio que a proibição de ações que visam a realização de aprofundamento científico não é compatível com o princípio da liberdade de expressão, intelectual e científica. Por este mesmo motivo, a investigação da validade da teoria do flogístico ou da alquimia por algum químico, do criacionismo por algum biólogo, ou dos efeitos terapêuticos de determinadas práticas religiosas para a alma humana por algum psicólogo também não poderia ser censurado. Não é necessário receber o apoio do pensamento científico dominante para que se possa realizar pesquisa científica ou de outra natureza. Admitir o contrário seria aceitar as razões que levaram a censura pública das ideias de Galileu e iluministas. Neste ponto, portanto, a sentença tão duramente atacada “no seu todo” por intelectuais e mídias sociais não parece errada ou mal fundamentada.

Em segundo lugar, temos uma questão bem diversa. Podem os psicólogos, no exercício de sua expertise técnico-científica realizar “o atendimento profissional, de forma reservada, pertinente à (re)orientação sexual”, quando  entendimento dominante e da categoria responsável pela sua fixação afirma que as terapias visando a “reorientação sexual” constitui-se em prática não ancorada no saber psicológico e psiquiátrico? Aqui também, antes de uma pronta resposta, é necessário fazer nova distinção. Afinal, o que devemos entender pela expressão (re) orientação sexual? Por um lado, não parece polêmico admitir que psicólogos poderão prestar relevante trabalho, ancorado nos cânones das melhores práticas da disciplina, no atendimento de pessoas que possam estar com “dúvidas e angustias” relativas a sua orientação sexual. Talvez o caso mais evidente seria o de atendimento psicológico a homossexuais que vivam dilemas e sofrimentos relacionados a aceitação de sua sexualidade. Por outro lado, a expressão “re” orientação sexual poderá sugerir outra situação, bem distinta. Reside aqui o ponto central da discórdia pública. Isto porque o saber psiquiátrico e psicológico dominante repudia a tese de que a homossexualidade seja uma “doença” que possa ou deva merecer uma “cura”. Muito ao contrário, este saber repudia tal crença e qualifica tal pensamento que a defende como desprovido de qualquer base científica aceitável contemporaneamente. Este é um aspecto central da polêmica. Pensemos num outro exemplo. Pode um paciente que procura um dermatologista em razão de sofrer de grave melanoma ser orientado pelo médico a esquecer as terapias prescritas pela medicina e substitui-las por rezas e usos de cristais fortalecedores dos espíritos? Parece trivial reconhecer que não. O médico quando se expressa na condição de médico, num consultório, deve agir informado pelo saber médico dominante, aceito pela comunidade científica, sob pena de provocar um risco ou dano ao paciente. O mesmo se dá quando o Estado autoriza tratamentos psicológicos ou psiquiátricos. Os profissionais encarregados de realizá-los estão comprometidos com os padrões e paradigmas do que a ciência psiquiátrica reconhece tanto como doença, como também como terapia. Se a ciência psiquiátrica, através de suas autoridades legítimas, não reconhece a homossexualidade como doença, é evidente que um tratamento com bases cientificas psiquiátricas não poderia fazê-lo. Em síntese, a cura gay, se entendida como o redirecionamento da conduta do indivíduo à heterossexualidade por ser este o único padrão de saúde mental, não poderia ser admitida como uma forma de terapia psicológica autorizada pelo Estado. Admiti-lo seria como permitir que um médico orientasse seu paciente a trocar a medicina pela crendice ou superstição. Neste ponto acredito que a decisão judicial foi infeliz e perigosamente ambígua. Se a interpretamos como autorizadora da famigerada “cura gay”, certamente ela extrapola os limites para o exercício tanto da liberdade intelectual, de pesquisa e de expressão. O magistrado falhou neste ponto que lhe custou forte execração pública.

Note-se que não deve haver limites para o desafio dos cânones da ciência psicológica contemporânea. Isto envolve, inclusive, as condutas que hoje podem ser consideradas supersticiosas, não-cientificas e inatuais. Contudo, a adoção de padrões de ações médicas e terapêuticas exige o compromisso daquele que se apresenta como médico ou expert de ministrar uma terapia de bases científicas e aceitar os standards de verdade dominante no seu campo de saber ao praticar este tipo de ação. A liberdade de expressão do médico no consultório não o autoriza a prescrever terapias com base em crendices e superstições. Semelhante compromisso recai sobre os psicólogos e psiquiatras que lidam com questões psicológicas relacionadas à sexualidade de seus pacientes, em geral pessoas em condição de especial vulnerabilidade afetiva e psíquica.

O terceiro aspecto destacado da resolução do Conselho de Psiquiatria também merece uma análise.  Para continuar nosso exemplo, poderíamos perguntar: Pode um dermatologista defender publicamente, por exemplo num programa de entrevista, a ideia de que poderosos cristais de cor avermelhada são a melhor cura para melanomas? Poderia um professor de biologia defender o criacionismo em programa televisivo? Poderia um religioso defender a ideia de que a homossexualidade é uma doença? Poderia, por fim, um psicólogo defender semelhante convicção num artigo de jornal? Entendo que sim. O espaço público do debate de ideias se diferencia do âmbito técnico e cientifico da prestação de um serviço de saúde como na prática da medicina ou da psicologia dentro de um consultório ou hospital. No âmbito do debate público, as ideias, por mais equivocadas, erradas e, por esse motivo, potencialmente enganosas e eventualmente perigosas para o processo de “Esclarecimento do Mundo”, não podem ser censuradas. Neste aspecto, é forçoso reconhecer que o Art. 4° da resolução impôs verdadeira censura aos psicólogos, e assim feriu a liberdade de expressão. A eventual e hipotética vantagem que a censura poderá representar em contextos muito particulares para a impedir a disseminação de equívocos e preconceitos não é aceitável do ponto de vista dos fundamentos da liberdade de expressão. Neste ponto, que não foi objeto da decisão judicial, é imperioso reconhecer que a resolução foi além do que permite a liberdade de expressão e a própria constituição brasileira

A liberdade de expressão é tema complexo demais para nos limitarmos as reações sanguíneas e apressadas que invariavelmente desperta. É dever de todos, e não apenas dos juristas, pensar nas razões para a sua existência, nos contextos de suas práticas e nos seus limites específicos.

Ronaldo Porto Macedo Junior

Doutor em Direito (1997), mestre em Filosofia (1993), graduado em Direito (1985) e em Ciências Sociais (1987), todos pela Universidade de São Paulo. Atualmente é Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo, Professor Titular do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da USP, Professor de Filosofia Política, Ética e Teoria do Direito na DIREITO GV e Professor do LL.M Legal Theory Program na Goethe University em Frankfurt am Main. Foi Visiting Scholar junto à Harvard Law School (1994-1996) e Visiting Researcher na Yale Law School (2002). Fez pós-doutoramento no King’s College of London (2008-2009).