Ilustração: Bia Leme

A cidadania nasceu masculina e branca. As mulheres se organizaram em clubes para reivindicar direitos iguais na Revolução Francesa, mas os jacobinos puseram fim a esses clubes no período do Terror. As mulheres francesas só conquistariam o direito ao voto em 1945, mais de 150 anos depois, com a derrota do nazi-fascismo. Na Itália, o voto das mulheres também teve de esperar a vitória aliada na Segunda Guerra Mundial, a despeito do papel considerado heroico de Anita Garibaldi – nascida Ana Maria de Jesus Ribeiro, brasileira de Santa Catarina — na luta pela reunificação italiana em meados do século 19. No Brasil, o voto feminino se tornou um direito em 1932 e uma obrigação em 1946, mas até hoje a presença das mulheres na política é reduzida. Na legislatura iniciada em 2015, elas representam apenas 9% do total da Câmara e 13% do Senado.

Na América Latina de língua espanhola, o reconhecimento pleno do direito de voto das mulheres se deu em 1927 no Uruguai,  em 1947 na Argentina, em 1948 no México e em 1949 no Chile. Nos Estados Unidos, foram necessárias cinco décadas de luta das sufragistas para que o Congresso aprovasse a 19º emenda assegurando que “The right of citizens of the United States to vote shall not be denied or abridged by the United States or by any State on account of sex.” A 15ª emenda já havia estendido o direito de voto aos negros, em 1870, em consequência da Abolição. Na prática, porém, o direito de voto aos negros americanos seria assegurado apenas em 1965, com o Voting Rights Act, uma das conquistas do movimento pelos direitos civis. Ainda assim, até hoje, em alguns estados, adotam-se expedientes para desestimular o voto dos negros (e hispânicos).

Não resta dúvida de que as lutas pela igualdade racial e de gênero puseram em marcha uma ampliação fundamental do conceito e da prática da cidadania. O feminismo estendeu a fronteira da discussão sobre a igualdade de direitos da esfera pública para o mundo privado e assim, ao incorporar à pauta política o corpo, a família, a casa, etc, abriu as portas para a reivindicação de direitos baseados não apenas no gênero, mas também na orientação sexual. O movimento negro norte-americano favoreceu a luta de outros grupos étnica e/ou racialmente discriminados. Fico num exemplo: o dos aborígenes australianos. O direito de voto deste povo originário, habitante da Austrália há 40 mil anos, foi assegurado em 1962,  com o Roberto Menzie’s Commonweath Electoral Act, iniciativa do primeiro-ministro homônimo, o primeiro de uma série de leis contra a discriminação que se desdobraram pelas décadas subsequentes, culminando com o pedido formal de desculpas do governo da Austrália, em 2008, pela secular opressão aos povos aborígenes.

Nem preciso dizer que falta ainda muito para a cidadania se tingir de várias cores e gêneros e orientações sexuais. É óbvio. Menos óbvio é saber se a cidadania deve ser pensada e vivida como a somatória de um conjunto de direitos referidos a identidades “parciais” e relativamente estanques ou como uma condição comum a todos. Essa questão é tanto mais importante quanto mais abrangentes se tornam os desafios que se colocam para a humanidade. Para não estender a lista, que vai da mudança climática ao combate ao terrorismo, destaco um só desafio abrangente: restabelecer a crença das sociedades democráticas em si mesmas diante do aumento das desigualdades sociais, que tende a crescer ainda mais com a nova onda tecnológica puxada pela Inteligência Artificial. Para produzir boas respostas a esses desafios, seria adequado o marco de referência da política e do pensamento baseado em identidades de gênero, raça e orientação sexual?

As duas principais vertentes políticas e intelectuais da modernidade demoraram a se dar conta da importância das identidades e desigualdades não exclusivamente socioeconômicas. No caso do liberalismo, pela dominância da economia neoclássica e do pensamento político neoliberal, a la Margareth Thatcher, em detrimento da matriz político-moral presente no liberalismo clássico. Com isso, a liberdade se viu reduzida à liberdade econômica e o cidadão, ao indivíduo utilitarista unicamente motivado a maximizar ganhos de natureza material.

No caso do socialismo, a cegueira às “novas identidades” se deu porque todo o esquema teórico de interpretação da sociedade e toda a política revolucionária se estruturavam em torno da “contradição principal”, ou seja, a divisão da sociedade entre uma classe de proprietários e outra de proletários. Tão enrijecido era o dogma que o socialismo real promoveu a deliberada repressão da homossexualidade, considerada um “desvio pequeno-burguês”.

Contra essas perversões da tradição moderna, a ênfase nas diferenças e desigualdades não diretamente socioeconômicas representou um avanço. Permitiu recuperar os valores da liberdade individual esmagados pelo socialismo real e empobrecidos pela visão economicista e reducionista do neoliberalismo.  Com isso, se enriquece o pensamento e a prática progressista, ao incorporar sensibilidades e reivindicações de direitos, no plano institucional e das relações sociais não codificadas, originalmente estranhos ao “main stream” da tradição iluminista.

Mas, afinal, onde estaria o problema com a afirmação das identidades “parciais”? Ele surge quando se perde a referência ao horizonte comum da cidadania, ao ideal do convívio e da comunicabilidade entre indivíduos diferentes que deliberam viver juntos sob os mesmos direitos e com igual responsabilidade sobre as condições de existência da comunidade política à qual pertencem. O ideal dista da realidade, sem dúvida. Mas serve de orientação para as ações coletivas e individuais no aqui e no agora.

Pensemos no Brasil. Sintomas de que a referência ao horizonte comum da cidadania se enfraqueceu estão um pouco por toda parte, no uso abusivo do conceito de “lugar de fala”, na obsessão em limpar a língua portuguesa de qualquer marca passível de ser interpretada como ofensiva a determinados grupos historicamente discriminados, na recusa em reconhecer o que é próprio da composição racial da sociedade e da cultura brasileiras, um lastro comum que não é nem branco nem preto.

A ênfase no que supostamente seria único e incomunicável em grupos identitários tem sido levada a extremos que nos fazem cegos àquilo que nos é comum. Comum não apenas na condição de brasileiros, mas na possibilidade de construir, juntos, uma sociedade efetivamente mais livre e igualitária.

Sergio Fausto

Sergio Fausto é Superintendente Executivo da Fundação Fernando Henrique Cardoso, co-diretor do Projeto Plataforma Democrática e co-editor da série de livros "O Estado da Democracia na América Latina". Faz parte do Grupo de Análise da Conjuntura Internacional da Universidade de São Paulo (Gacint-USP) e integra a equipe de colaboradores do Latin American Program do James Baker Institute for Public Policy, da Rice University. Fausto escreve regularmente para o jornal O Estado de S.Paulo e para o Infolatam – Información y Análisis de América Latina.