Imagem: Tim Dennell via VisualHunt / CC BY-NC

O conceito de “lugar de fala” tem se mostrado um dos temas mais polêmicos do debate público contemporâneo, especialmente quando consideramos alguns círculos ativistas, ou debates sobre a realidade das chamadas “minorias” sociais – negros, mulheres, LGBTs e outros grupos. Trata-se de uma discussão que de tempos em tempos volta a mobilizar muitos ânimos e debates muito intensos, o que eu até consideraria bastante positivo, não fosse a quantidade enorme de distorções e incompreensões que têm se espalhado em torno dessa pauta. De modo geral, o debate sobre os tais lugares de fala se converteu num quiproquó generalizado, em que as pessoas se debatem para decidir simplesmente quem “pode” ou não falar sobre este ou aquele assunto – se pessoas brancas podem ou não falar sobre racismo; se homens podem ou não falar sobre machismo; se heterossexuais “possuem” ou não “lugar de fala” para falar sobre homofobia… e assim por diante.

Nesse contexto, infelizmente, temos visto a discussão se perder cada dia mais, em uma polarização que considero bastante problemática. De um lado, estão os que defendem a necessidade de que apenas membros de determinadas minorias falem a respeito dos sistemas de opressões e violências que vivenciam, exatamente por poderem falar a partir destas vivências e experiências, enquanto pessoas afetadas por estes sistemas. Do outro lado, estão os que argumentam que qualquer pessoa pode ser capaz de entender qualquer assunto, tendo ou não passado por alguma vivência, de modo que todas as pessoas devem ter o direito de participar “igualmente” de todos os debates – neste caso, para este grupo, a ideia de lugar de fala seria não apenas um conceito equivocado, como também uma tentativa de silenciamento e uma ameaça à liberdade de expressão.

Cá, no meio do caminho, eu penso que as duas visões tenham as suas devidas parcelas tanto de razão quanto de equívoco. E o problema, para além da polarização, é que a própria noção de “lugar de fala” que está em jogo aí acaba nivelando a discussão por baixo. Afinal, um lugar de fala não é – ou não deveria ser – uma espécie de palanque de minorias pré-determinado, onde só alguns são “autorizados” a subir. Não é disso que se trata. Assim sendo, pra que essas discussões sejam mais frutíferas, penso que é necessário dar um passo atrás, e rediscutir o que é mesmo que estamos chamando de “lugar de fala”. De um lado, pra não usarmos o conceito de forma rasa e pouco produtiva; de outro, pra também não corrermos o risco de simplesmente abandonar o conceito por completo, como se ele não tivesse nenhuma utilidade.

Para empreender esse esforço, quero me remeter especialmente à discussão da filósofa indiana Gayatri Spivak, no ensaio “Pode o subalterno falar?” – um livro fundamental que, a propósito, inspirou o título do excelente texto de Djamila Ribeiro publicado há algumas semanas aqui no Dissenso.org. Em suas reflexões, centradas principalmente no contexto acadêmico e intelectual, Spivak direciona uma crítica a toda uma tradição de estudos sociais produzidos por pensadores e pesquisadores que sempre se dedicaram a estudar a “subalternidade”, mas sem que nunca propusessem um espaço para que os próprios sujeitos “subalternos” pudessem falar por si mesmos.

Neste caso, o efeito direto é que, por mais que a condição de “subalternidade” esteja sendo discutida, ela acaba sendo alimentada também, através do silenciamento de sujeitos que nunca ganham espaço para falar de si e por si, sem conquistar alguma dimensão de autonomia dentro destes debates. São casos em que as vozes dos sujeitos em posições de prestígio social seguem sendo mais ouvidas e mais respeitadas, e as existências e as realidades “subalternas” até ganham alguma “visibilidade”, mas sempre sob tutela, na posição de objeto e nunca na posição de sujeito. Posso mencionar, como exemplo, a ementa de um curso sobre “estudos transgêneros” que vi recentemente, que quase não tinha autoras ou autores transgêneros na bibliografia, sendo que estes autores existem e têm uma produção teórica cada vez mais abundante e relevante.

Quando se levanta essa crítica, discutindo sobre lugares de fala, a lógica de polarização que eu mencionei leva algumas pessoas a acharem que estamos propondo simplesmente “inverter” essa situação. Neste caso, dá-se a entender que essa seja uma reivindicação que procura simplesmente calar as vozes de sujeitos em posições de prestígio, a fim de criar espaço para que as vozes subalternas falem por si – o que seria, em outras palavras, a substituição de um silenciamento por outro, limitando inclusive o direito à liberdade de expressão. E eu devo dizer que a proposta está longe de ser essa – até porque essa é uma proposta que sequer me parece possível de se tornar concreta. Neste caso, ainda em conexão com a posição de Spivak, é importante destacar que a filósofa não deixa de lado a importância da figura do intelectual, justamente pelo papel importante que ele pode ter, ao ecoar o discurso dos sujeitos subalternos nos lugares de prestígio que estes sujeitos ainda não puderam alcançar.

De qualquer modo, mesmo que se considere isso, não deixa de ser necessário problematizar o próprio fato de que exista uma condição de subalternidade, ao ponto de que as vozes subalternas só sejam minimamente “ouvidas” quando mediadas por esses sujeitos em posições sociais de prestígio – e aqui cabe falar não apenas de intelectuais, mas também de homens, pessoas brancas, cisgêneras, heterossexuais, nas altas classes do poder econômico. É neste ponto que chegamos no centro da discussão principal em torno da questão dos lugares de fala: não se trata de uma reivindicação por silenciamento; se trata de uma reivindicação por autonomia. Ou, pelo menos, é isso que eu acredito que deveria ser. Assim sendo, não há absolutamente nenhum problema nas intenções de pessoas cisgêneras, brancas ou homens que queiram falar sobre realidades injustas que não vivenciam. Por sinal, acredito que a indignação contra injustiças é sempre muito bem-vinda. Contudo, não se pode deixar de estranhar a dinâmica social que faz com que as vozes dessas pessoas ainda sejam as que ocupam massivamente os espaços de fala, enquanto sujeitos “subalternos” falando das próprias experiências permanecem ainda numa condição de silenciamento e esquecimento, sem que o direito à liberdade de expressão seja plenamente garantido a eles também – uma vez que esse direito, assim como muitos outros, não é democraticamente distribuído, como discuti em meu último texto, também aqui no Dissenso.org.

Mais ainda, acredito que a própria expressão “lugar de fala” nos remete a uma outra reflexão importante: a ideia de que todas as pessoas falam a partir de algum lugar. Com isso, quero apontar para o fato de que todos nós ocupamos certas posições e papeis sociais, que invariavelmente impactam a maneira como compreendemos o mundo e a maneira como construímos as nossas opiniões sobre as coisas. Como afirma o filósofo russo Mikhail Bakhtin, nossos discursos cotidianos e a nossa visão de mundo são organizados principalmente a partir de um território social que todos nós ocupamos. Em suas palavras, “o centro organizador [de qualquer discurso], de toda expressão, não é interior, mas exterior: está situado no meio social que envolve o indivíduo”¹. E neste meio social, ser homem ou mulher, branco ou negro, cis ou trans, são elementos que fazem diferença, não por causa dessas identidades em si mesmas, mas por causa das vivências e experiências a que estes sujeitos estão submetidos dentro destas posições sociais. Em nossa sociedade hoje, por exemplo, um homem não recebe a mesma socialização que uma mulher, porque as expectativas que a sociedade lhe impõe são outras, de modo que as suas visões a respeito das questões de gênero provavelmente serão moldadas a partir de um outro prisma. Pelo mesmo caminho, mulheres brancas não passam pela mesma socialização que mulheres negras, que também não recebem a mesma socialização que homens negros, e assim por diante.

Dizer isso também não significa cair em generalizações apressadas e rasas, como se grupos de minorias fossem homogêneos, e como se os membros desses grupos compartilhassem exatamente as mesmas experiências, a ponto de entenderem a sociedade a partir das mesmas perspectivas. Afinal de contas, tais grupos também são diversos internamente, e a vivência de uma mulher ou de um indivíduo negro nem de longe representam a realidade de todas as mulheres ou de toda a população negra no Brasil. Como discute Avtar Brah², filósofa também indiana de que gosto muito, tais vivências importam, mas não são tudo. E apenas o fato de pertencer a um determinado grupo oprimido não nos confere nenhum tipo de “autoridade moral”, de modo que apenas o fato de um indivíduo ser negro ou ser mulher não lhe garante nenhuma expertise imediata para tratar de qualquer assunto que seja.

A questão toda é que, no curso deste debate, também não podemos fechar a discussão apenas na perspectiva de indivíduos específicos. De modo mais amplo, é preciso considerar toda uma dinâmica social que, ela sim, tem alguns elementos que se repetem de forma um pouco mais sistemática. Como a própria Brah também aponta, não podemos simplesmente ignorar o que essas identidades significam em termos da dinâmica e da estrutura da sociedade como um todo. Nesse caso, parafraseando a autora, costumo chamar atenção para o fato de que tais vivências não são tudo, mas importam. Discutir sobre lugar de fala implica em entender o ponto de equilíbrio dessa relação, observando a forma como questões sociais mais amplas acabam por interferir nas nossas vivências particulares, nas nossas visões pessoais de mundo, e até mesmo nas nossas relações interpessoais mais cotidianas.

Tal constatação nos leva ao desafio de pensar nos nossos discursos a partir das posições sociais que ocupamos, num movimento parecido com o que Spivak faz: ela não exclui os intelectuais do debate sobre a subalternidade, mas elabora uma longa reflexão sobre o lugar de privilégio que tais intelectuais ocupam na hora de falarem sobre esta questão. Neste caso, de forma análoga, nós, homens, podemos e até devemos nos envolver no debate sobre as questões de gênero, mas com o papel fundamental de pensar sobre a maneira como a sociedade forja a construção de uma masculinidade que é majoritariamente violenta e tóxica. Da mesma forma, pessoas cisgêneras e heterossexuais devem participar de debates sobre gênero e sexualidade, dando extrema atenção à maneira como suas vivências moldam a sua visão e a sua experiência de mundo a respeito de temas como orientação sexual e identidade de gênero. Por fim, pessoas brancas também podem e devem participar de discussões sobre as nossas hierarquias raciais, mas sobretudo com o papel urgente de pensar sobre a forma como a branquitude é sempre colocada numa posição superior, que lhes garante certos privilégios sociais. Isso tudo, pensando formas de investir em práticas e relações sociais que não sejam machistas, LGBTfóbicas ou racistas, num esforço real e concreto pela superação de desigualdades e preconceitos.

Sobretudo, é fundamental também identificar momentos em que é preciso refletir não apenas sobre os nossos lugares de fala, mas também sobre os lugares de escuta que todos precisamos ocupar – uma necessidade que tem acabado esquecida, no meio de tantas polêmicas a respeito de quem pode ou não pode falar o quê. Em síntese, pautar um debate sobre os nossos lugares de fala não implica em limitar a liberdade de expressão de quem quer que seja, indo no sentido exatamente contrário: o de incentivar um diálogo real e produtivo, garantindo que o direito à liberdade de expressão seja plenamente e efetivamente distribuído, sendo estendido também a sujeitos que têm sido historicamente ignorados e silenciados – sujeitos que podem oferecer perspectivas novas e importantes a respeito da realidade social contemporânea, e que merecem sair de uma posição de subalternidade para ocupar o debate público de forma mais autônoma, mais aberta e mais plural.

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¹ BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem.

² BRAH, Avtar. Cartografías de la diáspora.