Imagem: adaptada de everton137 via Visual Hunt / CC BY-SA

Temos o direito de expressar ideias preconceituosas e eventualmente xenófobas em manifestações públicas? Penso que sim. Este é um preço adequado a pagar pela liberdade de expressão e pela democracia.

No dia 03 de maio ocorreu um ato na avenida Paulista, na cidade de São Paulo, contrário à Nova Lei de Migração recentemente votada e aprovada pelo Congresso nacional e que aguarda a sanção presidencial. Os manifestantes gritavam slogans e palavras de ordem como: “Não, não, não, à lei de Imigração!!”; “Não ao terrorismo”, “Contra a invasão de nosso país por ideias terroristas”; “Contra os imigrantes terem mais direitos, inclusive previdenciários, do que os próprios brasileiros!”; “Desgovernantes respeitem o Brasil, ou não serão respeitados”; “Não queremos que ocorra o mesmo que está ocorrendo na Europa!”; “Não queremos islâmicos ligados ao Hezbollah no Brasil!”; etc.

Estas manifestações geraram reações de apoio e contrárias por parte de pessoas que estavam presentes. Alguns advogados de militantes favoráveis à lei alegaram que o ato veiculava conteúdos preconceituosos, insultuosos, intolerantes e, portanto, ilegais. Afirmaram que as ofensas praticadas deveriam ser enquadradas na lei 7.716, de 1989, que considera crime “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”, e que prevê pena de um a três anos de prisão, além de multa. Para eles, os limites da livre manifestação de ideias encontra a sua fronteira na expressão de “discursos de ódio” que veiculam conteúdos intolerantes, preconceituosos ou ofensivos.

Um exemplo desta posição foi expresso por André Augusto Bezerra, presidente da Associação Juízes para a Democracia, que de acordo com o periódico El Pais[1], entende que as declarações podem ser consideradas criminosas: “Não se pode propagar a intolerância. Existem valores comuns democráticos que a sociedade preserva, como o direito à manifestação, mas com a garantia de valores mínimos aos indivíduos. Propagar a intolerância pode comprometer esses valores mínimos”.

Estarão os críticos do Ato Anti-Imigração corretos em defender a criminalização do ato contrário à Nova Lei? Entendo que não. A despeito de pessoalmente defender a nova lei e desaprovar os argumentos expressos na manifestação, entendo que seus críticos têm o direito de expressar suas opiniões publicamente.

O tema da liberdade de expressão é certamente complexo, e um dos grandes problemas contidos em abordagens rápidas e parciais é que raramente elas são suficientes para abalar certos preconceitos e esquemas mentais poderosos que influenciam a cultura nacional sobre o assunto, em geral pouco liberal e marcada por vertentes do pensamento autoritário tanto de direita, como de esquerda.

Um dos argumentos correntes na tradição nacional sobre liberdade de expressão é o de que a incitação de preconceito e de intolerância é uma prática ilegal. Mas o que devemos compreender por incitação?  Num sentido lato e comum, incitar pode ser entendido como provocar um efeito. Nesta acepção, por exemplo, um bom professor é alguém capaz de incitar ou propagar a curiosidade nos alunos. No Brasil, com frequência é este o sentido invocado por muitos defensores da aplicação da lei 7.716, de 1989, acima referida. Tal entendimento, contudo, conduz à conclusão de que qualquer expressão de ideias preconceituosas deveria ser proibida e criminalizada. Fará isto algum sentido do ponto de vista da proteção constitucional da liberdade de expressão? É evidente que não. Se assim fosse, provavelmente uma grande parcela dos líderes religiosos, e até mesmo o Papa, deveria ser criminalizada e calada ao expressar (e propagar) ideias preconceituosas sobre temas morais. Afirmar, por exemplo, que somente os bons cristãos são dignos, seria uma forma de expressão de preconceito contra ateus e outros religiosos.

Incitar não pode ser compreendido como sinônimo de advocacia de ideias (advocacy of ideas), como desde há muito tem entendido a doutrina anglo-saxã sobre liberdade de expressão. Incitar exige a realização de uma prática discursiva diretamente relacionada à produção de uma ação. Trata-se de um encorajamento a uma ação direta e não a mera defesa de uma ideia que eventualmente, depois de um processo de reflexão e pensamento, poderá produzir uma ação. Incitar um crime envolve um tipo particular de encorajamento que pode ser causalmente decisivo na sua concretização. O exemplo típico é a convocação emotiva e passional para que membros de um grupo participem de um linchamento.

É evidente que o combate a uma ideia e a defesa do veto da lei de imigração não podem ser considerados incitação a prática de crime de discriminação ou à intolerância. Diferente seria se, durante a manifestação, houvesse o encorajamento direto a práticas de ações violentas como a agressão física ou a ofensa direta a imigrantes que lá estivessem. Isto sim, seria uma incitação ao crime. Observando vídeos e relatos da manifestação noticiada aparentemente não foi isto que ocorreu. Caso tenha ocorrido, contudo, é certo que apenas tais práticas especificas, mas não a manifestação como um todo estariam passíveis a um escrutínio do ponto de vista da lei penal.

É importante também destacar que a crítica que foi realizada pelos inimigos da nova lei se dirigia, no âmbito do debate público, à legitimidade e justiça de uma política de estado: a politica imigratória. Ela pedia uma ação política de veto à lei, o que está de acordo com as exigências básicas do processo democrático brasileiro.

Pode-se alegar, contudo, e com plausíveis razões, que manifestar-se contra uma lei de imigração mais inclusiva, cuja finalidade é também combater e eliminar preconceitos, seria intrinsecamente uma ação preconceituosa, somente defensável por ideias e convicções baseadas em equívocos e convicções xenófobas. Talvez. Mas seria esta uma razão adequada para a sua proibição? Novamente penso que não. A hesitante jurisprudência brasileira sobre liberdade de expressão ainda não se firmou de forma clara acerca da compatibilidade da censura de conteúdos com o principio da liberdade de expressão. Nos EUA, que contam com a mais rica e longa tradição liberal sobre o tema, a censura de conteúdo é corretamente entendida como uma violação da liberdade de expressão. Afinal, como fixar, a priori, os conteúdos que seriam aceitáveis? Como definir o que seriam ideias preconceituosas? A quem deveria estar relegada a função de “censor esclarecido” destas questões? A experiência histórica brasileira e internacional é plena de exemplos dos riscos que tais ideias trazem não apenas para a liberdade de expressão, como também para a própria democracia.

Mas não deveríamos impor limites nos modos de expressão? Afinal, uma expressão grosseira de uma ideia não constituiria um crime? O tema é complexo, mas antes de respondermos que sim, devemos nos lembrar que a imposição de “bons modos” a forma de expressão de ideias no debate público (não afirmo que isto valha para todos os contextos linguísticos, pois há contextos especiais onde os bons modos podem e devem ser protegidos, como, por exemplo, na escola) não importaria numa inaceitável exclusão de muitos daqueles que querem protestar, inclusive sobre os ditos “bons modos”? Deveríamos proibir aquele que afirma que o defensor do aborto é um criminoso de assim se expressar porquanto ele ofende e insulta o defensor do aborto? Seria razoável que o defensor do aborto, em resposta, não pudesse acusar os defensores da criminalização do aborto de fascistas, autoritários, idiotas, ou mesmo criminosos, uma vez que suas ações causariam mortes evitáveis como a prática de abortos em clínicas ilegais? Novamente penso que não. A linguagem da política nem sempre tem os bons modos dos salões de chá de Oxford e seria um enorme preconceito elitista exigir que o tivessem. A linguagem saudável dos processos democráticos é marcada por uma dose de emoção, engajamento, paixão e devoção, importantes combustíveis das militâncias e ações políticas. Por este mesmo motivo, a tolerância com a diferença, com as linguagens e com os conteúdos é uma exigência central da liberdade de expressão.

Se queremos viver numa sociedade democrática temos que pagar o preço da liberdade de expressão. E se prestigiamos de fato este valor, temos que estar preparados para conviver num mundo onde as pessoas não têm o direito de não serem insultadas pelas ideias advogadas pelos outros, mesmo quando elas nos pareçam erradas, preconceituosas e até perigosas. É um preço razoável a pagar para a vida numa sociedade democrática e possivelmente é também uma das boas razões que têm muitos imigrantes para desejar morar no Brasil.

[1] Protesto da direita anti-lei de migração incorreu em crime, diz especialista, EL PAÍS Brasil, in http://brasil.elpais.com/brasil/2017/05/04/politica/1493851938_726291.html, acessado em 04/05/2017.

Ronaldo Porto Macedo Junior

Doutor em Direito (1997), mestre em Filosofia (1993), graduado em Direito (1985) e em Ciências Sociais (1987), todos pela Universidade de São Paulo. Atualmente é Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo, Professor Titular do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da USP, Professor de Filosofia Política, Ética e Teoria do Direito na DIREITO GV e Professor do LL.M Legal Theory Program na Goethe University em Frankfurt am Main. Foi Visiting Scholar junto à Harvard Law School (1994-1996) e Visiting Researcher na Yale Law School (2002). Fez pós-doutoramento no King’s College of London (2008-2009).