Ilustração: João Grego

Quem convive com crianças que têm acesso a smartphones, tablets e smart TVs já deve ter se deparado com os vídeos realizados por outras crianças disponibilizados na plataforma online, YouTube. Por ser uma rede caracterizada pelo repositório de material audiovisual diverso alimentado pelos próprios usuários em seus canais, é possível ver no YouTube diferentes tipos de conteúdo de entretenimento, educacional, humorístico, erótico, documental, entre outros.

Ter uma câmera, filmar suas atividades cotidianas e publicar na rede é uma atividade comum nos dias de hoje. Mas, assim como no universo dos digital influencers, as marcas viram os populares canais que têm crianças no papel de protagonistas dos vídeos como oportunidades de divulgação dos seus produtos. Os chamados youtubers mirins atuam em parceria com empresas de forma estruturada e planejada. Embora a plataforma restrinja o cadastro a pessoas com mais de 13 anos de idade, muitos canais são alimentados por usuários com faixa etária menor que esta. Nos vídeos são feitas menções às marcas patrocinadoras – embora estas nem sempre sejam declaradas como tal –, mostrados os usos dos produtos através de tutoriais, propagados os conceitos de felicidade, aceitação social e sucesso a partir da aquisição de bens. Isso tudo é exibido numa ambiência fantasiosa, com elementos mágicos e divertidos nas cenas, e inserção do produto num contexto aparentemente espontâneo, embora estrategicamente calculado por métricas, views e likes. É uma nova forma de fazer publicidade para um público infantil, central em muitas regulações protetivas – como o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Código de Defesa do Consumidor –, as quais já deram sinais de funcionamento nos canais abertos de TV e que são objeto de vários projetos de lei no país.

A questão chegou recentemente aos tribunais. No caso, decidido no âmbito da Justiça Federal em Minas Gerais no último dia 19 de junho, o Ministério Público Federal solicitou que a Google Brasil disponibilizasse aviso, na página inicial do YouTube ou em todos os vídeos postados, no sentido de que é proibida a propaganda ou promoção de produtos/serviços protagonizados por crianças. Adicionalmente, demandou a inclusão de item relativo a essa proibição na página de denúncia de conteúdos impróprios na plataforma. Embora reconheça a existência de publicidade com crianças apresentando produtos disponíveis no mercado, a decisão judicial definiu que a empresa “não tem a obrigação legal de realizar o controle prévio sobre os vídeos postados por seus usuários e, consequentemente, não tem o dever legal de adicionar avisos e ferramentas de denúncia além daquelas que, dentro da sua discricionariedade como empresa privada, resolver estabelecer como política de atuação”.

O ambiente da internet ainda suscita muitos questionamentos em relação à regulação, pois é fundamental evitar conteúdos abusivos, mas também garantir a livre expressão na rede. Ressalto, porém, a necessária discussão sobre a liberdade de expressão como direito humano fundamental em contraponto ao interesse econômico das grandes corporações, as quais têm buscado novas e sofisticadas formas de consolidar sua imagem junto ao público, garantindo assim lucratividade.

A monetização das redes sociais é um ponto hoje prioritário na atuação e sustentação das empresas do ramo de serviços online. E, para isso, muitas destas se valem do argumento em defesa da liberdade de expressão para evitar regulações que possam, de alguma forma, impactar nos seus modelos de negócio. Nesse contexto, decisões judiciais como a mencionada acima acabam desestimulando o desenvolvimento de políticas mais restritivas, por parte das próprias plataformas, para publicidade dirigida a crianças.

Como sociedade precisamos nos questionar sobre as reais intenções das empresas e se, de fato, nossa liberdade de expressão e os nossos direitos fundamentais estão garantidos nesse cenário. Ou pensamos sobre isso ou teremos um aprofundamento da dominação privada e comercial em nossas vidas e na vida das nossas crianças.

Glícia Maria Pontes Bezerra

Graduada em Comunicação Social pela Universidade Federal do Ceará (2004), mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2007) e doutora em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (2015). É docente da Universidade Federal do Ceará desde agosto de 2006. Tem experiência na área de comunicação, com ênfase em publicidade e propaganda, atuando principalmente nos seguintes temas: publicidade, regulação, discurso e hegemonia.