Ilustração: Caio Borges

As manifestações pedindo o retorno dos militares ao poder ou uma intervenção militar constitucional tornaram-se frequentes após as jornadas de junho de 2013. Cinquenta e nove porcento dos brasileiros dizem confiar nas Forças Armadas, de acordo com pesquisa realizada pela Fundação Getúlio Vargas em outubro de 2016. Embora muitos afirmem que, apesar da instituição ter ganho a chamada “guerra contra a subversão”, perdeu-se a “batalha de memórias” sobre a ditadura, parece que os militares possuem grande prestígio frente à sociedade, a despeito de mais de duas décadas de ditadura civil-militar.

Em 17 de abril de 2016, mais precisamente, na sessão da Câmara dos Deputados que aprovou o impeachment de Dilma Rousseff, o deputado e militar da reserva Jair Bolsonaro (PSC-RJ), ao declarar-se favorável ao afastamento da presidenta, dedicou seu voto “à memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra”, salientando: “perderam em 64, perderam agora em 2016”. Brilhante Ustra, morto em 2015, foi condenado em uma ação declaratória movida por uma família paulista, permitindo ser chamado “torturador”.

Como comandante do DOI-CODI, local onde essa família fora torturada e onde morreram e desapareceram muitas pessoas, deveria ter sido responsabilizado não somente pelos atos praticados, mas também pela omissão em investigar as outras centenas de denúncias de torturas, mortes e desaparecimentos ocorridos em sua jurisdição. Eis que inicia sua relação com a impunidade. Passou incólume pela transição política, e em um livro publicado posteriormente, onde “rompia o silêncio”, concebia a tortura como uma prática legítima e justificável e que, historicamente, era/seria impune. Vinte e cinco anos depois, em meados de 2010, a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República registrava uma média de três denúncias de tortura cometidas por agente de segurança.

Não fora a primeira manifestação apologética de Bolsonaro em relação à ditadura civil-militar e às práticas de terrorismo de Estado que foram implementadas como forma de dominação política: em entrevista à revista IstoÉ em 2000, justificava o uso da tortura durante a ditadura e legitimava seu uso na democracia para o combate ao tráfico de drogas. Em consequência da declaração na Câmara, o Partido Verde (PV) protocolou uma representação no Conselho de Ética, acusando o deputado de quebra de decoro parlamentar. Depois de alguns meses, o processo foi arquivado, prevalecendo o entendimento que Bolsonaro proferiu sua opinião como parlamentar no plenário, e, neste caso, é imune a sansões civis e penais.

O parlamentar foi eleito em 2014 para o seu sexto mandato como deputado federal com 464 mil votos; sua página do Facebook contabiliza 4 milhões de curtidas. Para medir o impacto da fala de Bolsonaro, basta consultar o Google Trends e verificar que, da sessão de votação do impeachment aos seis dias subsequentes, o termo “Carlos Alberto Brilhante Ustra” alcançou o pico de popularidade nas pesquisas realizadas através do mecanismo de busca. A partir de então, inspiradas no “mito” ou “Bolsomito”, disseminaram-se publicações apologéticas à ditadura e suas práticas nas redes sociais.

Devido à amplitude dessas manifestações, o deputado federal Wadson Ribeiro (PCdoB – MG) propôs um projeto de lei para criminalizar “a apologia ao retorno da ditadura militar ou a pregação de novas rupturas institucionais”, alterando o art. 287 do Código Penal, que estabelece a detenção de três a seis meses ou multa àquele que fizer, publicamente, “apologia de fato criminoso ou de autor de crime”.

Criticadas por indivíduos ou organizações de direitos humanos, mobilizava-se o direito à liberdade de expressão e opinião para defender a tortura. Impossível analisar aqui as intrincadas relações entre esse direito e a internet, mas, nessas breves linhas, pode-se atentar para uma tendência no uso abusivo da liberdade de expressão, um direito humano reconhecido pela Organização das Nações Unidas, através da banalização de seu emprego com a intenção de ferir os direitos de outra pessoa, ou seja, de uma prática que exime a responsabilidade legal.

Uma das formas atuais de abuso do direito de liberdade de expressão refere-se ao discurso de ódio, mas também o discurso de apologia a práticas criminosas e violadoras dos direitos humanos, como a tortura – prática que viola não somente a Constituição brasileira, que assegura que “ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante”, como o Código Penal, que estabelece sansões a quem realizar publicamente apologia de fato criminoso ou de autor de crime.

Do ponto de vista da história, não se trata necessariamente de negacionismo. Ustra e Bolsonaro não negam que a tortura tenha sido utilizada como prática para obtenção de informações durante a ditadura; ambos a legitimam, e justamente essa legitimidade encontra eco na tradição e cultura autoritárias brasileira, que leva à naturalização de atos de autoritarismo e violência. Apelam para a pós-verdade, onde fatos objetivos têm menos importância que crenças pessoais ou apelos emocionais.

Um dos problemas que pode ser verificado como professora e pesquisadora da temática da ditadura civil-militar é entende-la a partir de uma lógica dualista: ou se é a favor, ou se é contra a ditadura. É preciso questionar o passado recente a partir de outros interrogantes que extrapolem o binarismo moral: quem se beneficiou com o regime? Por que não houve punição à tortura durante a ditadura? Quais são os legados do período para a democracia?

A apologia à ditadura e à tortura é exercitada como forma de reforçar marcadores de exclusão da sociedade brasileira: a máxima “bom mesmo era no tempo da ditadura” traz consigo, sub-repticiamente, determinadas visões de sociedade, em que é valorizada a autoridade, a hierarquia, além de práticas de controle e vigilância, onde os papeis para mulheres, para a população negra e para os mais pobres são estabelecidos e estanques. Retornando à pergunta que intitula esse artigo, tudo depende do compromisso que se estabelece com a democracia.