Ilustração: Caio Borges

Tribunais no Brasil continuam recebendo — e muitas vezes deferindo — ações que pedem a suspensão integral de meios de comunicação

Tentar cercear a liberdade de expressão no Brasil via judiciário é ato frequente que assume as mais diversas formas. É só pesquisar nos quase 2.800 processos cadastrados no Ctrl+X, plataforma da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) para mapear censura judicial, que encontramos de tudo um pouco. Há tentativas de retirar comentários do Facebook, posts do Twitter, buscas do Google, trechos de matérias e reportagens completas de sites jornalísticos. Dois tipos de processo, no entanto, se destacam: os que pedem censura prévia, um “cala a boca” conforme mostramos em nosso último artigo, e os que pedem ao juiz que derrube todo o meio de comunicação, incluindo partes que nada têm a ver com a reclamação do autor.

Esse “tiro de canhão” foi disparado mais uma vez em abril, quando a Justiça do Mato Grosso do Sul determinou que o jornalista Nélio Brandão retirasse inteiramente do ar seu “Blog do Nélio”. O juiz do caso, Paulo Afonso de Oliveira, da 2ª Vara Cível do estado, ameaçou prendê-lo pelo crime de desobediência, caso mantivesse a página ativa.

Foi a terceira decisão liminar em prejuízo do jornalista. A justiça do Estado já havia obrigado Nélio a retirar trechos de quatro artigos escritos com críticas ao Ministério Público Estadual e também havia decidido que ele deveria “se abster” de publicar novas matérias relacionadas à instituição com tom pejorativo. Como o jornalista furou a censura prévia e continuou publicando artigos sobre a instituição, o juiz citou a “conduta reiterada” do réu para derrubar o site inteiro.

A decisão de retirar a página noticiosa do ar foi publicada em 7 de abril, Dia do Jornalista. A data homenageia a luta de Líbero Badaró para escrever sobre temas polêmicos censurados pela imprensa alinhada a D. Pedro I. O conhecido artigo de Badaró, “Liberdade de Imprensa”, de 1829, discorre exatamente sobre a ideia de que o abuso da imprensa não justifica a supressão da sua liberdade. A censura ao blog de Nélio na data em que comemoramos a liberdade de imprensa no Brasil lembra que ainda há muito por se fazer nesse campo.

E não apenas nos meios digitais.

Levantamento feito pelo Ctrl+X durante as últimas eleições mostra que, apenas durante o período de campanha, 88 ações judiciais tentaram recolher jornais locais de circulação — uma delas chegou a pedir busca e apreensão da chapa matriz do impresso — e 20 processos tentaram suspender toda a programação de pequenas rádios. Entre as tentativas mais ousadas no meio digital, o atual prefeito de Manaus, Arthur Virgílio, pediu a retirada de todo o site do Facebook do ar e o atual prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, tentou fazer com que todo o site do jornal O Globo fosse bloqueado. Nestes casos digitais o pedido foi negado, mas em mais de 40% dos pedidos de recolhimento de jornais locais, os juízes determinaram a censura.

A imprensa local, formada por rádios, impressos de pequeno porte e blogs jornalísticos, é importante voz nas pequenas cidades brasileiras. Ela é, no entanto, vítima cada vez mais frequente desse tipo assédio judicial. Só contra blogs, há 77 processos listados na plataforma Ctrl+X pedindo a retirada parcial ou completa dos sites do ar. A razão mais citada nos processos é a difamação. Uma análise detida sobre o mérito dessas ações mostra que o que se considera difamação pelos autores, na maioria dos casos, pode ser visto como simples exercício da crítica.

Há, no entanto, luz no fim desse túnel que acaba no Supremo Tribunal Federal. Embora ainda vejamos decisões de censura total a meios de comunicação por tribunais locais, há entendimento cada vez mais sólido no STF de que isso não deve acontecer. Após o julgamento da ADPF 130, existe jurisprudência na corte em favor da liberdade de imprensa, com um número crescente de decisões nesse sentido. O fato de a presidente do STF, ministra Carmem Lúcia, ter criado recentemente uma comissão para apurar processos contra a liberdade de imprensa, reforça a percepção de que a corte atua para preservar esse direito.

Mostra dessa tendência é o fato de que, em 5 de maio, um mês após a censura contra o blog de Nélio Brandão, a decisão foi suspensa pela corte suprema. Na argumentação, o ministro Dias Toffoli escreve que “toda a lógica constitucional da liberdade de expressão e da liberdade de comunicação social aplica-se aos chamados ‘blogs jornalísticos’ ou ‘jornalismo digital’, o que resulta na mais absoluta vedação da atuação estatal no sentido de cercear, ou no caso, de impedir a atividade desempenhada.” A tendência em favor da liberdade de expressão na corte é um alento, mas não garantia de sucesso. Vale lembrar de casos recentes de quebra de sigilo de fonte de jornalistas (num deles o próprio Toffoli chegou a sustentar a quebra de sigilo, e no outro a operação Lava Jato divulgou conversa captada de Reinaldo Azevedo não relacionada com a investigação) e que, antes de Carmem Lúcia, o ministro Ayres Britto já havia criado, sem grandes resultados, uma comissão sobre a liberdade de imprensa.

(Reza a lenda que as últimas palavras de Badaró, ao morrer assassinado, foram “Morre um Liberal, mas não morre a Liberdade”. Cá entre nós, isso está mais para uma visão romanceada da história que para fato verídico, mas é triste constatar que, quase dois séculos depois, a liberdade de imprensa ainda não seja encarada como direito estabelecido em todas as esferas do judiciário. Os tempos são outros, morreram censores, mas não morreu a censura.)