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Os ofícios da história e do direito aproximam-se e se distanciam, estabelecendo uma relação intrincada, principalmente em se tratando de direitos humanos. Embora muito debatido no âmbito jurídico, o chamado “direito ao esquecimento” traz alguns problemas para o conhecimento histórico. Não me refiro ao reconhecimento de um direito individual ao esquecimento no caso a caso, mas o asseguramento desse direito a partir de leis e normativas. Falarei sobre esse tema a partir da temática da ditadura civil-militar brasileira, mais especificamente a partir da criação da Comissão Nacional da Verdade e da promulgação da Lei nº 12.527, de 28 de novembro de 2011, que regula o acesso à informação.

Os debates sobre o direito à memória ou o dever de memória não se circunscrevem ao caso brasileiro. As massivas violações de direitos humanos ao longo do século XX suscitaram debates sobre a importância de preservar informações para as gerações futuras, assim como se estudou a complexa relação que os sobreviventes desses episódios estabeleciam com a memória daqueles que morreram: um compromisso, um dever de preservá-los, nem que somente a partir da denúncia do padecimento.

Com a criação da Comissão Nacional da Verdade (CNV) e com seus trabalhos desenvolvidos ao longo de mais de 30 meses em colaboração com comissões e comitês estaduais, pode-se apurar nominalmente as responsabilidades por graves violações de direitos humanos cometidas durante a ditadura civil-militar brasileira. Além disso, a entrada em vigor da lei de acesso à informação citada anteriormente, uma das legislações mais progressistas aprovada com tal finalidade, estabelecia, em seu artigo 3º, que a divulgação de informações deveria ser o preceito geral, e o sigilo entendido como exceção; no parágrafo único do artigo 21, que “as informações que versem sobre condutas que impliquem violação dos direitos humanos praticadas por agentes públicos ou a mando de autoridades públicas não poderão ser objeto de restrição de acesso”; e, por fim, no artigo 31, que conduta ilícita, ensejando responsabilidade de agentes públicos civis ou militares, “destruir ou subtrair, por qualquer meio, documentos concernentes a possíveis violações de direitos humanos por parte de agentes do Estado.”

A CNV e a Lei 12.527 respondiam a demandas de ex-presos e perseguidos políticos, familiares de mortos e desaparecidos e setores da sociedade civil, organizados ou não, militantes de direitos humanos. Mesmo que a recomendação apontada no relatório final da comissão sugerisse a responsabilização penal pela violação de direitos humanos, o Estado brasileiro ainda não se mobilizou para o cumprimento dessa recomendação, o que gerou muita insatisfação daqueles demandantes. Porém, a divulgação dos nomes e das responsabilidades foi um avanço nas garantias ao direito à memória e à verdade e ao conhecimento da história recente no Brasil.

No entanto, suponhamos que alguma dessas pessoas implicadas nessas graves violações de direitos humanos pleiteasse o “direito ao esquecimento”, corroborando sua argumentação com os preceitos da Lei de Anistia, onde lhe é garantida a impunidade em relação a esses crimes?

Foram muitos os episódios históricos em que o esquecimento foi sugerido como a melhor forma de lidar com o passado. Na noite do dia 21 de julho de 356 a.C., Heróstrato pôs fogo no templo de Artemis, em Éfeso, na atual Turquia. Afirmou-se que desejava fama a qualquer preço e, por seu rompante de grandeza – do qual nunca se furtou à responsabilidade do ato cometido – foi condenado à morte e ao esquecimento: os cidadãos efésios promulgaram um decreto proibindo qualquer menção ao seu nome – Damnatio memoriae, ou “danação da memória” –, cuja desobediência era punida com pena capital. Porém, o registro do episódio e sua conservação até os dias de hoje evidenciam o descumprimento da proibição; talvez seja desnecessário afirmar que os responsáveis por tal delito sejam dois historiadores, Públio Valério Máximo e Teopompo. Não precisamos nos remeter aos antigos para localizar práticas de esquecimento deliberadas por parte de governos: as próprias ditaduras do Cone Sul, incluindo a brasileira, reivindicaram durante os processos de transição política o esquecimento como forma de mais rapidamente se alcançar a democracia, a conciliação e a pacificação nacionais.

Em que pesem os direitos civis garantidos pela Constituição de 1988, e que talvez respaldem o chamado “direito ao esquecimento”, é necessário se questionar se, em se tratando de violações de direitos humanos, a história, a lembrança e a memória, ou seja, os direitos coletivos têm primazia frente a direitos individuais.