Ilustração: Caio Borges

Eitan Hersh, cientista político americano, cunhou a expressão “political hobbyism” para se referir a uma modalidade de participação política tão frenética quanto estéril, caracterizada pela ação individual sem maior gasto de tempo e energia. A política transformada em hobby não visaria senão a autossatisfação de quem a pratica e não produziria mudança real na sociedade. A cada click, forward or send, o “political hobbyist” teria o sentimento do dever cívico cumprido, a baixo custo. Hersh acredita que essa modalidade de participação política está substituindo o trabalho de organização de grupos para atuar coletivamente em favor de uma causa ou de um partido, em particular entre as elites progressistas. Trabalho chato e demorado, mas indispensável, argumenta, para imprimir alguma direção à mudança social.

O argumento de Hersh faz sentido. O Civil Rights Act, que baniu toda forma de discriminação legal contra os negros nos Estados Unidos, em 1964, não teria sido possível sem um amplo movimento iniciado ainda na década de 1950 sob a liderança, entre outros, de Martin Luther King. Ativistas dos direitos civis se organizaram coletivamente e se expuseram em carne e osso à violenta reação das forças segregacionistas do Sul dos Estados Unidos. Produziram a mais importante mudança político e social desde a abolição da escravatura, quase cem anos antes. Isso demandou tempo, coragem e persistência.

Hersh não chega a atribuir a culpa pelo “political hobbyism” à expansão das mídias sociais, mas associa uma coisa à outra: a tecnologia permitiu aos indivíduos uma forma de participação política que não estaria disponível sem a Internet e seus aplicativos.

Até aí eu acompanho o argumento do autor. Ele se esquece, porém, de que o declínio da participação cívica e política dos americanos começou muito antes do advento das mídias sociais. É o que aponta o sociólogo americano Robert Putnan em Bowling Alone: the Collapse and Revival of the American Community, publicado em 2000, com edição em português pelo Instituto Atuação, bem como Theda Skopkol em Diminished Democracy: From Membership to Management in American Civic Life, de 2003.

Publicação organizada por Bernardo Sorj e por mim (Ativismo em Tempos de Internet, disponível gratuitamente em http://www.plataformademocratica.org/portugues/publicacoes), com 19 estudos de caso em seis países latino-americanos, incluindo o Brasil, mostra que a Internet e as mídias sociais possibilitam diferentes formas coletivas de participação política e que a atuação on-line pode ou não se combinar de diversas maneiras com a ação off-line.

Em suma, a queda na participação política antecede a disseminação das mídias sociais e provavelmente seria maior sem ela. Creio que essa afirmação se aplica à totalidade das democracias atuais. Não há um jogo de soma zero entre participação política no mundo virtual e no mundo real (mundos cujas fronteiras são cada vez mais porosas, por onde pessoas e organizações transitam de um lado ao outro constantemente).

Não resta dúvida, porém, de que o tempo despendido em interações on-line vem subtraindo o tempo dedicado às interações cara a cara. Isso muda a qualidade da participação política e pode afetar negativamente a capacidade de a sociedade sustentar ao longo do tempo iniciativas políticas que requeiram persistência para produzir frutos.

Abro aqui um parêntese, antes de retomar essa ideia e então concluir este artigo.

Semanas atrás participei de um encontro chamado por jornalistas, intelectuais, etc. que por décadas militaram no antigo Partido Comunista Brasileiro (PCB), gente que aderiu ao eurocomunismo e, desde o final dos anos 70, abraçou a democracia como valor universal e, hoje, se pergunta o que fazer para ajudar o país a sair da imensa crise política em que nos encontramos. Era eu um dos poucos estranhos no ninho. Os demais compartilhavam mais do que uma visão comum do mundo. Compartiam uma experiência conjunta que atravessou décadas, revelada em diversas referências irônicas às posições ocupadas por cada um na estrutura do PCB e aos rituais que marcavam as reuniões do partido, sempre iniciadas com informes da direção. As hierarquias, os rituais burocráticos, as intermináveis discussões ideológicas, tudo isso ficou no passado. O que restou vivo são a memória comum e os laços pessoais criados pelo convívio de várias décadas, base para novos projetos coletivos, agora mais abertos à influência de estranhos no ninho.

Cabe perguntar se esse “nós” teria resistido ao passar do tempo se as suas interações constitutivas tivessem se dado sem a co-presença física dos participantes. A participação com co-presença implica um gasto de tempo e energia maior do que as relações mediadas pela Internet e um grau de comprometimento igualmente maior de cada um (é bem mais fácil se desligar de um grupo virtual). Nem sempre o convívio orientado para a política é prazeroso, como sabe qualquer pessoa que já tenha participado de uma reunião política e/ou partidária. O mesmo se pode dizer da panfletagem em estações de metrô, do trabalho de boca-de-urna ou fiscalização da apuração dos votos, da organização de comitês locais em época de eleições, em suma, da maioria das ações políticas “tradicionais”.

Não é necessário ficar preso a essas formas “tradicionais”. É possível encontrar novas formas de fazer política, na interseção entre o on-line e o off-line. O ponto importante é que o agir em conjunto, para perdurar, requer a formação de laços interpessoais que exigem tempo e convívio.

A maior duração de agrupamentos políticos, assumam ou não forma partidária, é fundamental não apenas para que a democracia funcione. Mas também para que, democraticamente, a mudança social resulte da ação coletiva e deliberada de atores comprometidos a promovê-la, e não de lideranças providenciais ou dos impessoais automatismos das transformações tecnológicas e socioeconômicas.

O ativismo político dá mais trabalho do que o clickativismo, mas o preço de abandoná-lo é alto. Os americanos que o digam.

Sergio Fausto

Sergio Fausto é Superintendente Executivo da Fundação Fernando Henrique Cardoso, co-diretor do Projeto Plataforma Democrática e co-editor da série de livros "O Estado da Democracia na América Latina". Faz parte do Grupo de Análise da Conjuntura Internacional da Universidade de São Paulo (Gacint-USP) e integra a equipe de colaboradores do Latin American Program do James Baker Institute for Public Policy, da Rice University. Fausto escreve regularmente para o jornal O Estado de S.Paulo e para o Infolatam – Información y Análisis de América Latina.