Ilustração: Bia Leme

Uma das características fundamentais da publicidade contemporânea é o desaparecimento do produto e da sua funcionalidade como argumento principal dos anúncios. A alma do negócio passa a ser a afetividade da marca, a sua relação com o consumidor e com a sociedade, através de posicionamentos que invocam as emoções e propagam a adesão às causas sociais.

Esta é uma tendência do discurso publicitário desde o final do século passado, quando Maria Eduarda Mota Rocha em “A nova retórica do capital: a publicidade brasileira em tempos neoliberais” (São Paulo: Edusp, 2010) apontou a recorrência à qualidade de vida e à responsabilidade social nas publicidades “de ponta” realizadas por grandes marcas. Apesar dessas “inovações”, há ainda a permanência de práticas consideradas antigas, como a venda porta a porta e a propaganda baseada em argumentos fantasiosos e enganosos sobre a qualidade dos produtos.

No último mês, o New York Times publicou uma grande reportagem sobre como a indústria de alimentos têm adotado estratégias de distribuição e crescimento do seu mercado em países de terceiro mundo. O Brasil é, por sua extensão territorial e tamanho populacional, um lugar prioritário para essa ação, além de ser um país em que as políticas públicas e as regulações se submetem, quase sempre, ao interesse privado, o que facilita a inserção e expansão da indústria. Os repórteres destacaram “a habilidade política da indústria” no Brasil em relação às decisões que impactam nos modos de vida da população e referiram-se, especialmente, às tentativas frustradas por parte do Estado para regular o setor de alimentos com o objetivo de combater a obesidade.

Ao ler a matéria somos quase que transportados ao período colonial, quando a dominação territorial das metrópoles sobre as colônias se dava de forma agressiva e sem respeito às especificidades locais. Nesse caso, a matéria versa sobre o poderio da Nestlé, uma das maiores corporações globais do ramo de alimentos industrializados, que, de acordo com a investigação realizada pelos jornalistas americanos, adota velhas/novas estratégias para vender nos rincões do Brasil.

Através de uma ação que une “formação” e venda direta, a indústria chega à população das periferias por meio da contratação de revendedores que, em troca dessa fonte de renda, vestem a camisa da marca e defendem a qualidade do produto. Essa tática tem transformado os hábitos alimentares em várias localidades do Brasil e em outros países subdesenvolvidos, na contramão do que recomendam várias pesquisas já conhecidas nos países centrais sobre a urgente necessidade de praticarmos uma alimentação cada vez mais natural em detrimento ao consumo de industrializados.

O exército de vendas diretas da Nestlé faz parte de uma mudança mais ampla na estratégia das indústrias alimentícias, que inclui a entrega de junk food e bebidas açucaradas consumidas no Ocidente até os rincões mais isolados da América Latina, África e Ásia. Enquanto suas vendas caem nos países mais ricos, as multinacionais do gênero alimentício, como Nestlé, PepsiCo e General Mills, aumentam sua presença de forma acintosa nos países em desenvolvimento, comercializando seus produtos tão ostensivamente que chegam a transtornar os hábitos alimentares tradicionais do Brasil, Gana e Índia”.

A publicidade tradicional veiculada nas mídias parece não dar mais conta e por isso é necessário criar um mutirão de vendas porta a porta com condições de pagamento condizentes com as classes sociais mais pobres e com o momento econômico do país. Para tanto, são desenvolvidos produtos para linhas diferentes de público, adequando o preço e o apelo à praticidade como aliado à imagem de uma marca suíça de alta credibilidade. É um lucro adquirido com base na falta de informação e alimentado por uma indústria que combate e se protege das regulações sob o falacioso argumento da liberdade de expressão comercial. A consequência é real: aumento do número de casos de obesidade e de transtornos alimentares.

Consumimos alimentos sem termos a total clareza sobre suas procedências e composições nutricionais, enquanto tentam nos convencer de que somos livres entre prateleiras de enlatados, rótulos mentirosos e informações manipuladas.

Glícia Maria Pontes Bezerra

Graduada em Comunicação Social pela Universidade Federal do Ceará (2004), mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2007) e doutora em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (2015). É docente da Universidade Federal do Ceará desde agosto de 2006. Tem experiência na área de comunicação, com ênfase em publicidade e propaganda, atuando principalmente nos seguintes temas: publicidade, regulação, discurso e hegemonia.