Ilustração: Caio Borges

Antes do surgimento da Internet, as disputas em torno da democratização das comunicações tinham como foco a promoção da diversidade de opiniões e visões de mundo, evitando que poucos grupos econômicos ou o governo controlasse todos (ou grande parte) de meios como jornais, emissoras de rádio e TV.

A preocupação é absolutamente justificada, e há vários exemplos, nacionais e estrangeiros, sobre como o uso das comunicações pode interferir em disputas políticas, conflitos internacionais e em nossos hábitos cotidianos. Não é por outro motivo que as democracias pressupõem liberdade de informação e imprensa. Os cidadãos somente poderão fazer boas escolhas políticas se estiverem bem informados. E para tanto, os governos e o Estado devem estar submetidos a amplo escrutínio público, supervisionados pela sociedade e questionados sobre assuntos de interesse público pela imprensa. Em outras palavras, a democracia só pode funcionar se todos os cidadãos souberem o que se passa dentro do Estado, se puderem definir quais são os problemas que merecem ser incluídos em nossa agenda política, e se tiverem ampla liberdade de debater quais as soluções recomendáveis, independentemente de qualquer censura ou licença.

É claro que tudo isso ainda é importante. Com a Internet, entretanto, muitos acreditaram que o problema da diversidade seria resolvido naturalmente. Era uma expectativa legítima, pois os custos para produzir, processar e transmitir informação foram abruptamente derrubados com a tecnologia, abrindo espaços para que qualquer um veiculasse sua opinião, reportasse acontecimentos, etc. A Internet e as tecnologias digitais demoliram velhas estruturas de sustentação do poder e abalaram de maneira importante o equilíbrio entre os diversos direitos associados à circulação de informação. Grupos dissidentes historicamente reprimidos por governos autoritários tinham agora um veículo para se expressar, e as tiranias não sobreviveriam às novas possibilidades de organização trazidas com a rede.

Como o tempo mostrou, a Internet não nos livrou dos velhos problemas. E ainda nos trouxe uma imensidão de novos desafios: a influência do direito autoral na concentração das comunicações ou como instrumento de censura; as amplas possibilidades de vigilância, monitoramento e limitação da atividade política dos cidadãos por parte do Estado; a incapacidade de controle dos dados pessoais, entre tantos outros.

O resultado das disputas em torno destes temas determinará a qualidade das democracias no mundo inteiro. Enquanto se busca a solução ideal para cada um dos impasses trazidos pela tecnologia, os velhos poderes políticos (partidos, governos nacionais e estrangeiros) e econômicos, antes ameaçados pela inovação, estão aprendendo a utilizar o poder da tecnologia a seu favor. E este uso é extremamente preocupante, pois pode deteriorar de maneira brutal nossas liberdades e democracia.

Informação e disputas de poder

Há quem menospreze o poder da informação, mas exemplos bastante palpáveis mostram seu valor: o time de futebol que mais gera audiência, rende mais dinheiro; o intermediário que mais coleta e sabe processar nossos dados, ganha mais dinheiro; o partido político visto como mais capacitado e honesto aos olhos do povo, elege mais representantes e aprova mais leis e medidas (que valem muito dinheiro). Mais do que isso, assimetrias de conhecimento e informação geram grande vantagem competitiva. O time que que teve acesso à formação e ao esquema tático do adversário antes da partida leva grande vantagem. O comprador que sabe que o vendedor está desesperado por dinheiro tem mais poder de barganha. A missão diplomática que tem suas comunicações espionadas (como aconteceu com o Brasil), sai atrás nas negociações internacionais. Vale a pena repetir: informação é poder, e assimetrias no controle dos fluxos de informação geram assimetrias de poder. Cientes da importância geopolítica deste controle, os países mais poderosos do mundo investem recursos em espionagem, vigilância e propaganda.

Nesta guerra de interesses políticos e econômicos, há muito acontecendo. Ha países como a China, por exemplo, que não apenas censuram determinados tipos de conteúdo, mas também utilizam táticas mais sutis para combater o dissenso político, remunerando pessoas para postar conteúdos que as distraiam do engajamento político. Há países como a Rússia (e é interessante perguntar quais outros), que tentam desestabilizar democracias, disseminando informações que favoreçam seus interesses ou simplesmente tentando gerar desconfiança sobre os resultados eleitorais. No âmbito local, a disputa democrática foi completamente transformada, com partidos e candidatos investindo cada vez mais pesado em propaganda e desinformação nos meios digitais (mesmo fora do período eleitoral), levando a universidade de Oxford a criar um projeto exclusivamente dedicado à propaganda computacional, ou computational propaganda.

Práticas semelhantes já foram reportadas no Brasil em tempos de eleição e turbulência política. O sofisticado marketing político envolve não apenas a produção de conteúdo especializado para a Internet, mas também a criação de perfis falsos comandados por pessoas, que criam relacionamentos virtuais (mas verdadeiros) para disseminar notícias de veículos tradicionais, como o uso de bots (robôs, ou simplesmente softwares) que podem criar e replicar determinados conteúdos, incluindo propostas (o que é muito bom), calúnias e notícias falsas (veja este e este post aqui no Dissenso.org sobre o tema). Há até estratégias de comunicação pensadas especificamente para a repercussão, na Internet (a segunda-tela) dos debates na TV, onde candidatos levantam apenas sutilmente pontos incômodos para o concorrente e terceirizam para a Internet (perfis falsos, robôs e gente como eu e você) os ataques mais agressivos ao rival. No âmbito jurídico, há também uma verdadeira batalha para derrubar os conteúdos dos candidatos e apoiadores dos adversários, bem documentada no projeto Ctrl-X.

Cada país, ao seu modo, tem buscado soluções para assegurar a estabilidade. Países considerados autoritários seguem pelo caminho de estabelecer um controle rígido da Internet, censurando e proibindo aplicações (como VPNs) que habilitam cidadãos a contornar os bloqueios a certos tipos de conteúdo. Além de suprimir as comunicações de dissidentes, estes países buscam ter um rígido controle sobre as plataformas e intermediários de Internet, forçando-os a obedecer a rígidas normas locais ou banindo plataformas completamente de seu território.

Este, obviamente, não é um caminho adequado para uma democracia. O diabo é que países democráticos também estão optando pela via de intervenções regulatórias na circulação de informação e tomando decisões altamente questionáveis do ponto de vista da liberdade de expressão, como faz a União Europeia ao estimular os intermediários de Internet a remover conteúdos com base nos seus termos de uso e códigos de conduta, ou a Alemanha, que com o objetivo de melhorar o combate a conteúdo ilícito na rede (incluindo as notícias falsas) estabelece pesadas multas contra as redes sociais, dando-lhes incentivos econômicos para remover os conteúdos reportados por seus usuários, correndo o risco de que estas plataformas apaguem conteúdo lícito por receio de arcar com os custos de multas e indenizações.

Para evitar a tentação regulatória, empresas têm adotado medidas para coibir a desinformação. Em 2016, Mark Zuckerberg anunciou em seu perfil medidas para combater as notícias falsas, que incluíam retirar os incentivos financeiros (mapeados nessa reportagem e denunciados por Morozov neste artigo) para veicular tais conteúdos (que rendem muitos cliques e dinheiro) e estimular que terceiros verifiquem a veracidade (fact-checking) de conteúdos. O Facebook, como os demais intermediários da Internet, não quer moderar ou monitorar os conteúdos postados por seus usuários. Uma moderação mais ativa afetaria a natureza jurídica da plataforma, que deixaria de ser um mero intermediário, atraindo para si a responsabilidade jurídica pelos conteúdos postados. O monitoramento prévio de conteúdos (barrar a replicação um vídeo, por exemplo) poderia elevar os custos do negócio. Pior ainda: uma vez implementado um mecanismo desse tipo, o que impede seu uso de ser estendido para qualquer tipo de conteúdo?

O Facebook não é o único a tomar medidas nesse sentido. Pressionado pela presença de conteúdo extremista na sua rede (mais uma prova que quem disputa o poder preocupa-se com veicular informação e sua narrativa dos fatos), o Twitter está considerando adicionar meios para que os usuários reportem informações falsas ou nocivas, enquanto o Google incorporou mecanismo parecido em seu motor de buscas.

A iniciativa das empresas no sentido de deferir à comunidade um papel mais ativo no controle das notícias falsas é de primeira importância para a liberdade de expressão, especialmente diante da tentação regulatória (extremamente problemática quando tratamos de liberdade de expressão) observada tanto em países democráticos quanto autoritários.

Em pouco mais de um ano, o Brasil será palco de novas eleições, em um momento importante para reafirmar seu compromisso com a democracia. Nossa população precisa estar bem informada, ter acesso a fontes diversas e confiáveis de conteúdo. As notícias falsas são apenas uma das ameaças à qualidade da nossa democracia. Nunca foi tão importante discutir sobre como preservar e fazer prosperar um ambiente saudável de informação.

Luiz Fernando Marrey Moncau

É fellow no Center for Internet and Society da Stanford Law School, onde também foi pesquisador. Foi coordenador do Centro de Tecnologia e Sociedade (CTS), da FGV DIREITO RIO. Formado pela PUC-SP, mestre e doutorando em Direito Constitucional pela PUC-Rio. Co-autor das pesquisas “O Estado Brasileiro e a Transparência” e “Avaliação de Transparência do Ministério Público” e autor do livro Liberdade de Expressão e Direitos Autorais, publicado em 2015 pela Elsevier. Visite sua página na Stanford Law School: http://cyberlaw.stanford.edu/about/people/luiz-fernando-marrey-moncau