Ilustração: Caio Borges

No último mês de março, Taís Gasparian abordou os desenvolvimentos de um “direito ao esquecimento” no Brasil, concluindo com uma relevante pergunta: “a quem a sociedade brasileira estaria disposta a delegar o poder de decidir o que será ou não lembrado no futuro?” Mais do que isso, a autora posicionou-se no sentido de que um direito ao esquecimento seria descabido e não teria fundamento no nosso Direito, posição com a qual concordo em grande medida.

Entretanto, é imperativo destrinchar mais este tema, sob pena de misturarmos coisas distintas debaixo de uma vaga terminologia e, pior ainda, afirmarmos pela repetição a existência de um “direito” que não se sustenta em nossa lei ou jurisprudência. Para proteger adequadamente a livre expressão, não podemos aceitar que esta confusão, repetida mil vezes, transforme-se em verdade. Proponho neste artigo que abandonemos o uso dessa vaga expressão, tratando coisas distintas pelos nomes que melhor lhes descrevem.

1) As palavras importam

Em primeiro lugar, entendo que precisamos abandonar definitivamente a cativante expressão “direito ao esquecimento”. As palavras importam, e como todos aqueles que trabalham no campo da comunicação (e da política) sabem a linguagem não serve apenas para descrever a realidade, mas também a cria, delimita nossas possibilidades de imaginação e reflexão sobre o que está a nossa frente. Então, é imperativo questionarmos: existe de fato um direito ao esquecimento? Se existe, em que termos, sob quais justificativas e com base em que fundamentos?

Nos muitos casos em discussão no Brasil (e em vários casos em outros países), o que há efetivamente são demandas por supressão de conteúdo em diversos meios de comunicação. Algumas contra meios tradicionais (como a televisão). Outras contra os intermediários de internet, como redes sociais ou mecanismos de busca. Estas demandas valem-se de diversos fundamentos jurídicos para restringir a circulação de informação. Para fins didáticos, podemos dividir os fundamentos de demandas por esquecimento em dois grupos[1].

No primeiro grupo, estão fundamentos como a proteção do direito à intimidade, à reputação, à imagem e/ou à dignidade da pessoa humana. Estes fundamentos estão intimamente relacionados à noção de proteção da privacidade. Destaca-se aqui, que a ideia de privacidade é de difícil (para não dizer impossível) definição e na literatura nacional ou estrangeira não há qualquer acordo sobre sua abrangência.

No segundo grupo de demandas para restringir a circulação de informação encontram-se aquelas com fundamento na proteção de dados pessoais. Estas demandas são especialmente importantes em países que possuem legislação específica tratando do tema. Este é o caso dos países membros da União Europeia, que legislaram sobre o tema a partir de uma diretiva (norma) geral do bloco comercial, datada de 1995.

Mas se estas demandas possuem fundamentos jurídicos distintos, o que as une sob a rubrica de um “direito ao esquecimento”? Penso que seja apenas o fato de que estas demandas buscam suprimir informações (seja na televisão ou em mecanismos de busca) que tratam de fato antigo, que hoje em dia não seria mais relevante. Se este é um aspecto central da querela jurídica (a antiguidade do fato) faz sentido agrupar demandas distintas em torno da ideia de esquecimento. Nada disso faz o pedido, entretanto, transformar-se em um direito. Apenas a análise do caso concreto poderá indicar se existe uma restrição justificável à livre expressão.  Por isso mesmo que as palavras importam: não estamos tratando (e não deveríamos repetir ao vento) de um direito ao esquecimento. Trata-se meramente de demandas por esquecimento, com múltiplos fundamentos, que serão aceitas ou não pelo Judiciário.

2) Os fundamentos e os pedidos importam

O segundo grupo de demandas por esquecimento está fundamentado na proteção de dados pessoais. E nesse ponto, o Brasil é muito diferente da União Europeia e de vários países latino-americanos, pois não possui uma regulamentação ampla e específica sobre proteção de dados pessoais. Por isso mesmo, não faz sentido transportar sem questionamentos para o Brasil o debate inaugurado pela decisão do caso que opôs o Google Espanha à Agencia Espanhola de Proteção de Dados na União Europeia. Nesse caso, o Tribunal Europeu considerou que o mecanismo de busca do Google realizava o tratamento de dados pessoais e que, portanto, o Google deveria ser considerado responsável por esse tratamento.

O raciocínio conduziu, naquele caso específico e com grandes repercussões no mundo inteiro, à seguinte conclusão: quando um mecanismo de busca recebe uma solicitação baseada no nome de um indivíduo, ao retornar uma página de resultados este serviço estaria estabelecendo um “perfil mais ou menos detalhado da pessoa em causa”. Ou seja, mesmo ao indexar conteúdos que estão publicamente disponíveis e acessíveis na Internet, o mecanismo de busca estará sujeito às normas de proteção de dados pessoais.

Esta decisão tem várias consequências. Em primeiro lugar, ao formular o problema jurídico como uma questão de proteção de dados pessoais, passou a ser possível solicitar que a informação indexada nos mecanismos de busca seja removida mesmo que não seja difamatória, falsa ou imprecisa. Pela decisão da União Europeia, a informação não precisa ser privada (divulgada sem autorização) ou mesmo ilegal. A disseminação de tal informação sequer precisa ser prejudicial ao titular dos dados pessoais.

Além disso, seguindo a lógica das normas de proteção a dados pessoais europeias, a decisão afirma que um indivíduo (titular de dados pessoais) pode solicitar, com fundamento nessas normas, a interrupção do tratamento de seus dados diretamente à empresa. Nos casos em que a empresa se recusa injustificadamente a remover o resultado da página de buscas, o indivíduo pode recorrer às agências administrativas europeias, e esses órgãos podem impor altas sanções aos buscadores. Tudo isso, até este momento, sem a supervisão do Poder Judiciário, que pode eventualmente ser acionado se a empresa ou o indivíduo não ficar satisfeito com o resultado das decisões administrativas.

Cabem aqui, algumas considerações: a decisão da União Europeia tem pouco ou nada a ver com as ações que têm movimentado os tribunais brasileiros com demandas de esquecimento. Em primeiro lugar, porque em sua grande maioria estas ações são movidas contra meios de comunicação tradicionais, como nos casos de Aida Cury ou da Chacina da Candelária. Não se trata, portanto, de pedidos de desindexação de mecanismos de busca – que em países de língua inglesa tem sido chamado de Right (ou como prefiro, request) to be Delisted. Tampouco versa sobre o processamento de dados pessoais. Apenas um caso movido contra mecanismos de busca e que toca a legislação brasileira (esparsa e pouco profunda) sobre dados pessoais foi decidido por tribunais superiores. Neste caso, a Ministra do STJ Nancy Andrighi afastou a possibilidade de desindexação com base nas normas de proteção aos dados pessoais existentes no Marco Civil.

Vale destacar, ainda, que nos casos específicos contra mecanismos de busca, duras críticas têm sido impostas aos defensores de demandas por esquecimento (desindexação) do ponto de vista da livre expressão. Estas críticas tratam do procedimento criado na União Europeia.

3) O procedimento importa

Os documentos internacionais de direitos humanos e de proteção à liberdade de expressão são claros e cristalinos: a liberdade de expressão (que engloba não só o direito de falar, mas também o de buscar e compartilhar informações) somente pode ser restringida em casos excepcionais e claramente previstos em lei. Mais do que isso, estas restrições devem ser impostas somente para atingir uma finalidade legítima e devem ser necessárias e proporcionais.

Dentre os muitos critérios estabelecidos para prestigiar estes requisitos, está o de que restrições à informação devem ser aplicadas somente por uma autoridade competente (em nosso caso, o Poder Judiciário) e cercada de salvaguardas processuais. As demandas por esquecimento na UE não respeitam integralmente a estes padrões. Um dos principais problemas dos procedimentos na Europa é a responsabilidade por definir o que deve ou não ser removido dos mecanismos de busca é alocada primeiramente nas mãos de uma empresa privada, que tem todos os incentivos para eliminar os resultados de sua busca e se livrar de problemas com multas e indenizações. Mais do que isso, estas empresas estão sendo obrigadas a desindexar os conteúdos globalmente (como requerido pela autoridade de proteção de dados na França), não informar ao criador do conteúdo sobre a desindexação (como requerido pela autoridade da Espanha), bem como não divulgar ao público detalhes sobre a desindexação de determinados conteúdos.

Cada uma dessas situações merece uma análise aprofundada, que pretendo realizar neste espaço em outro momento. O resultado do conjunto de restrições é a inviabilização da defesa da legalidade dos conteúdos por meio dos seus autores (meios de comunicação, blogueiros, etc…) e pelo público em geral, que sequer tomam conhecimento da limitação à livre circulação de informação.

4) Há exceções em que estas demandas por desindexação devem prosperar?

Apesar de todos os problemas com as demandas por esquecimento, há alguns casos em que acredito que demandas por desindexação poderiam ser aceitas. São casos em que o conteúdo a ser desindexado foi declarado ilegal, mas por motivos técnicos não podem ser removidos na fonte original. Exemplo dessa hipótese seria o website que traz dados financeiros, de saúde, senhas de serviços ou outros dados pessoais de cidadãos. Nesses casos, revelando-se impossível solicitar à fonte original a remoção do conteúdo ilegal, parece razoável buscar meios alternativos para fazer observar a legislação, mas apenas como última medida e por meio de ordem judicial.

Garantir a liberdade de expressão no Brasil é um desafio que pode ser enfrentado desde já, momento em que os debates sobre proteção de dados pessoais esquentam no legislativo.

[1] Outros grupos poderiam ser acrescentados como demandas genéricas à supressão da veiculação ou hospedagem de conteúdos e informações, como proteção ao direito autoral, às marcas, ao sigilo comercial, à segurança nacional, entre tantas outras.