“Tolerância não significa tolerar a intolerância” – Imagem: Stephen D. Melkisethian via VisualHunt / CC BY-NC-ND

Discursos de ódio e supremacia racial não são página virada na história. De Charlottesville à Cracolândia (a Odiolândia, que retrata Giselle Beiguelman), a intolerância à alteridade insiste ainda hoje em dar as caras.

“Unite the Right” (re)coloca-nos diante do dilema sobre a criminalização dos discursos de ódio.

A concreta violência que decorre do ódio merece tratamento penal, disso não há dúvida. O atropelamento com resultado morte, fatídico desfecho daquele 12 de agosto em Charlottesville, será tratado como homicídio. Outros atos de violência poderão caracterizar crimes de dano e lesão corporal. A questão é o que fazer com a violência no nível do discurso, se as democracias garantem a liberdade de expressão.

No Brasil, alguma resposta à questão foi dada já em 1988, pela fundação de um Estado Democrático de Direito destinado a assegurar os valores de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. O artigo 5º da Constituição Federal, o mesmo que estabeleceu o princípio da igualdade, dispôs que a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais (inciso XLI) e, assim, previu constituir crime inafiançável e imprescritível a prática do racismo (inciso XLII).

O dispositivo constitucional foi regulamentado pela Lei nº 7.716/89, que criminaliza atos de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. A criminalização do discurso ficou por conta do artigo 20, que tipifica as condutas de praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito, e de veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo.

Em setembro de 2003, o Pleno do Supremo Tribunal Federal concluiu histórico julgamento sobre o tema, no bojo do habeas corpus nº 82.424/RS – impetrado pela defesa de Siegfried Ellwagner, que fora condenado pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul em razão da publicação de livros com conteúdo antissemita.

O argumento da defesa para pleitear a ordem de habeas corpus foi o de que, não sendo o povo judeu uma raça, o crime praticado não seria o de racismo.

Embora as questões centrais do julgamento tenham sido o sentido constitucional do termo raça e o alcance do artigo 5º, LXII da Constituição (prevaleceu a compreensão de que, para além de aspectos puramente biológicos e etnológicos, tal sentido se constrói a partir das práticas discriminatórias do racismo, que são histórico-político-culturais),  debateu-se longamente sobre a potencial inconstitucionalidade da norma incriminadora dessa modalidade de racismo frente à garantia constitucional da liberdade de expressão.

A aplicação do princípio da proporcionalidade pôs fim ao que o Supremo afirmou tratar-se de conflito entre dois valores constitucionais. Decidiu-se que, se a discriminação racial levada a efeito pelo exercício da liberdade de expressão compromete a própria ideia de igualdade, e a dignidade humana, estas devem prevalecer sobre o direito individual de manifestar o pensamento.

Em outras democracias não é diferente. Alemanha, Reino Unido, França, Espanha e Portugal – para citar alguns exemplos –, todos incriminam variadas formas de manifestação discriminatória, incluindo os discursos revisionistas. Nesses países, como aqui, toma-se a igualdade como o pilar estruturante da democracia, antes de qualquer outro.

A igualdade é constitutiva da democracia e assegura que todos, inclusive as minorias, possam expressar-se livremente? Ou é liberdade plena de expressão que constitui as sociedades verdadeiramente democráticas, salvaguardando os indivíduos da opressão por discursos dominantes escolhidos pelos Estados?

Na tradição norte-america, a Primeira Emenda da Constituição confere valor quase absoluto à liberdade de expressão, nela enxergando o pilar estruturante da democracia, antes de qualquer outro.

Segundo Ronald Dworkin[1], além de sua justificação instrumental (ideia de que a liberdade de expressão, como não impedimento, é necessária para que o povo governe o governo e não vice-versa), a liberdade de expressão tem função constitutiva. Constitui a democracia porque “só conservamos nossa dignidade individual quando insistimos que ninguém – nem o governante nem a maioria dos cidadãos – tem o direito de nos impedir de ouvir uma opinião por medo de que não estejamos aptos a ouvi-la e a ponderá-la”.

Sob a perspectiva de uma sociedade assentada na responsabilidade moral individual, a liberdade de expressão deve proteger todo e qualquer discurso, incluindo os discursos de ódio abominados pela maioria. Apenas a pluralidade plena de opiniões legitimaria o processo democrático.

Em tempos de Alt-Right e Trump, até na América estão abaladas convicções arraigadas sobre o valor primordial atribuído à liberdade de expressão.

De um ponto de vista teórico, talvez não exista resposta certa ou errada para a questão da criminalização dos discursos de ódio, mas diferentes escolhas, calcadas em diferentes premissas e justificativas.

Na “vida real”, o que os recentes acontecimentos em Charlottesville nos mostram? Aberrações do naipe de Hitler estão mais vivas do que ousamos um dia imaginar. Limitar excepcionalmente a liberdade de expressão pela criminalização de discursos extremos parece uma tentativa legítima de evitar a repetição de atrocidades concretas.

[1] O direito da liberdade: a leitura moral da Constituição norte-americana. São Paulo, Martins Fontes, 2006, p. 327.