Exposições de arte costumam ter dentre seus financiadores bancos privados, que por meio de seus departamentos culturais, incentivam a produção artística e a diversificação cultural. Foi o caso da mostra Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira, realizada em agosto no Santander Cultural, em Porto Alegre. A exposição, contudo, foi cancelada (1, 2, 3, 2, 4 e fotos) no dia 10 de setembro por meio da nota abaixo:

NOTA SOBRE A EXPOSIÇÃO QUEERMUSEU

Nos últimos dias, recebemos diversas manifestações críticas sobre a exposição…

Publicado por Santander Cultural em Domingo, 10 de setembro de 2017

 

O descontentamento levou alguns até mais longe.

O motivo do cancelamento foi uma mobilização nas redes sociais impulsionada principalmente por integrantes e simpatizantes do Movimento Brasil Livre (MBL), que além de dizer que o conteúdo da exposição era pornográfico e incitava a pedofilia e zoofilia, encorajava seus seguidores a boicotarem o banco. Tudo começou com este vídeo, publicado na página Terça Livre:

 

A nota de esclarecimento do banco foi compartilhada mais de 2.600 vezes nas redes sociais, por diversos influenciadores políticos. Dentre eles, o prefeito de Porto Alegre, Nelson Marchezan Júnior (PSDB/RS), que deu força ao coro do discurso dos mobilizadores. O tucano diz não ser responsável pela postagem, que segundo ele, teria sido feita por um secretário, e foi apagada logo em seguida.

Captura de tela anterior à exclusão do conteúdo na página do prefeito / Sul21

“Desde quarta-feira passada [06/09], houve um ingresso de membros do MBL – não estou falando isso para ser sensacionalista, foi efetivamente o que aconteceu – na exposição, com câmeras em punho, agredindo verbalmente as pessoas, fazendo perguntas, muitas das quais eu me sinto constrangido em repetir, para adolescentes, crianças, para o público em geral, escolas, profissionais, de uma forma absolutamente agressiva e transformando em imagens, que circulam em vídeos editados em grande volume. Esses ataques sistemáticos não pararam desde então”, disse Gaudêncio Fidélis, curador da exposição, em uma excelente entrevista feita ao portal Sul 21 no dia 10 de setembro.

Boa pergunta.

Outros políticos locais também manifestaram-se a favor do encerramento da exposição, como o deputado estadual Marcel Van Hattem (PP/RS), que compartilhou nota do Procurador de Justiça Criminal do MP-RGS, Alexandre Lipp, além de realizar diversas críticas (1, 2, 3) ao uso da Lei Rouanet (o banco disse no dia seguinte que irá devolver à Receita Federal os R$ 800 mil captados) e discursar em plenário e nas redes sobre o que entende ser “ideologia de gênero”. O secretário municipal de Serviços Urbanos, Ramiro Rosário (PSDB/RS), eleito vereador em 2016 com apoio do MBL, também fez postagens em seu site pessoal e na sua página do Facebook. O secretário comemorou ainda o indeferimento do pedido liminar para reabertura da exposição, feito em ação popular movida por um advogado de Pelotas (RS).

 

Foto: Fernanda Piccolo / Juntos

A oposição convocou de imediato uma manifestação (Relatos 1, 2, 3) em defesa da liberdade de expressão artística e contra a LGBTTfobia. Arthur Moledo, do canal MamãeFalei e do Movimento Brasil Livre, conhecido por se infiltrar em manifestações e fazer provocações grosseiras para registrá-las em vídeo, não perdeu a oportunidade e foi até Porto Alegre incitar os ânimos dos manifestantes:

 

 

O ato acabou com uma “demonstração moderada de força”, segundo o tenente Claudiomiro Tavares.

Foto: Isadora Neumann / Agência RBS

Isadora Neumann, a repórter fotográfica do Zero Hora que capturou a demonstração, acabou atingida por spray de pimenta.

 

O discurso daqueles alinhados com o Movimento Brasil Livre batiam na tecla de que o conteúdo da exposição seria “pornográfico”, “incitava pedofilia e zoofilia” e teria efeito negativo sobre as crianças que passaram por lá. O grande alcance da organização nas mídias sociais fez com que a busca por estas palavras-chave no Google disparasse:

 

 

Manchetes da notícia na grande mídia

Após a ampla cobertura da polêmica pelos veículos de comunicação, ela obteve alcance nacional no mecanismo de busca:

 

 

“O que diriam aqueles que acusaram Adriana Varejão de fazer apologia à zoofilia se vissem uma célebre imagem de autoria de Salvador Dalí, na qual um leão e um touro lambem os seios de uma mulher, um cão e uma ovelha mordiscam órgãos genitais masculinos, enquanto uma rã e um rouxinol divertem-se com a reentrância de um ânus e as texturas de um par de testículos humanos?”, questiona o jornalista e pesquisador Lira Neto, ganhador de quatro prêmios Jabuti, em sua coluna na Folha.

Cena de interior II (1994), por Adriana Varejão / Foto: Reprodução
🤔

 

 

Renan Quinalha, advogado e professor de Direito da UNIFESP, disse em postagem na sua página do Facebook que “A mostra Queermuseu não fazia qualquer apologia a crime. Retratar, em linguagem artística, determinado crime, ato obsceno ou conduta repulsiva não configuram apologia. Representar é, inclusive, uma forma de se poder denunciar ou criticar. Silenciar não acaba com um problema, basta ver como a Igreja católica lida com a pedofilia e como o “fingir que nada está acontecendo” só aumenta o problema”. Quinalha também participou de um vídeo do Justificando, onde explica seu posicionamento:

 

 

Caroline Silveira Bauer, colunista deste site e professora do curso de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, diz em sua coluna deste mês: “Gostaria de chamar a atenção para o nível argumentativo da discussão, que, em muitos casos, sequer poderia ser considerado argumentação, pela ignorância e pelo discurso de ódio, demonstrando, nesse sentido, muita hipocrisia.”

A polêmica já virou projeto de lei: o deputado estadual Lucas Redecker (PSDB/RS), autor do texto que pretende instituir uma classificação indicativa de idade em exposição, amostras, exibições de arte e eventos culturais no Rio Grande do Sul, diz ver uma lacuna na legislação: “Hoje a a gente tem hoje classificações indicativas que se referem a cinemas, programas de televisão e peças de teatro, não engloba exposições. Sem dúvida alguma, se tivesse classificação indicativa para exposições o impacto [da Queermuseu] seria muito menor, de mídia e manifestações.”

E também virou caso de CPI.

Na sexta-feira (22), porém, sobreveio uma boa notícia para aqueles que se interessaram pela exposição e não puderam comparecer: a mostra será exibida no Museu de Arte do Rio (MAR) na Praça Mauá. A data de reabertura ainda não foi marcada…

…mas isto já gerou novas propostas de boicote: