Ilustração: João Grego

Em determinado senso comum, costuma-se opor memória e esquecimento, porém alguns profissionais afirmam que são fenômenos complementares: há muita lembrança no olvido, e vice-versa.

Os acontecimentos do século XX e a vivência de uma nova experiência de tempo, marcada por uma percepção de uma constante aceleração, fez com que memória e esquecimento adquirissem outros significados, marcadamente sociais e políticos. A construção de memoriais, a museificação da vida cotidiana e a preocupação com os diversos patrimônios, as modas retrô, etc; tratam-se de indícios de uma nova relação com o tempo histórico e uma nova articulação entre presente, passado e futuro. O que será lembrado ou esquecido? E por quê? E quem tomará essa decisão?

Essas reflexões, que me coloco enquanto historiadora, tornaram-se ainda mais atuais com a inauguração do Memorial Luiz Carlos Prestes em Porto Alegre, no dia 27 de outubro de 2017. E se reatualizam com as tentativas de impedir que a cerimônia ocorresse.

Antes de alertar sobre à interdição ao passado, são necessárias algumas palavras sobre o memorial. A obra foi concebida por Oscar Niemeyer como uma homenagem ao amigo, ao longo de 18 anos. Em 2008, o projeto foi entregue à família e, passada quase uma década, ele será inaugurado no centenário da Revolução de Outubro de 1917 e dos 93 anos da Coluna Prestes. O terreno que a construção ocupa foi cedido pela prefeitura de Porto Alegre em 1990, através de um projeto de lei do então vereador Vieira da Cunha (PDT), aprovado na câmara municipal. O prefeito à época, Olívio Dutra, sancionou a lei e cedeu uma área na esquina das avenidas Ipiranga e Edvaldo Pereira Paiva em Porto Alegre. No entanto, as obras somente foram iniciadas em 2012 por meio do financiamento privado de uma instituição que, como contrapartida, alugou parte do terreno para sua sede. As obras se encerraram em 2014, mas a abertura do memorial foi adiada inúmeras vezes.

Uma delas ocorreu naquele mesmo ano, no dia 8 de novembro, quando manifestantes fixaram cartazes nas grades de proteção do memorial com os seguintes dizeres: “Srs. vereadores: gastar milhões – memoria do comunismo não – queremos saúde e educação” e “Fora Foro de São Paulo”. Além disto, foram deixadas cruzes e coroas de flores em um ato que se intitulou “Aniversário da Queda do Muro de Berlim e Homenagem às Vítimas do Comunismo”

Mais recentemente, em março de 2017, o vereador Wambert Di Lorenzo (PROS) propôs que o memorial fosse extinto e, em seu lugar, fosse criado o Museu da História e da Cultura do Povo Negro. Sua justificativa é que “Prestes foi um traidor da pátria brasileira, é um absurdo ele ser retratado como um herói”, enquanto “a história e a cultura do povo negro são de uma riqueza inestimável […] são tesouros que precisam ser sempre lembrados, como a epopeia vivenciada pelos heroicos Lanceiros Negros.” O discurso do deputado coloca em disputa as memórias de duas experiências diferentes, que não necessariamente são antagônicas, ou seja, para lembrar uma coisa não seria necessário esquecer outra.

Porto Alegre é uma cidade que homenageia muitas personalidades. Nos últimos anos, pelas iniciativas da chamada justiça de transição, as homenagens a ditadores, torturadores e outras pessoas vinculadas à ditadura civil-militar têm sido questionadas. No caso, tratam-se de instituições e obras públicas, como avenidas e escolas, ou placas comemorativas, estátuas, memoriais. O Memorial Luiz Carlos Prestes é uma iniciativa particular, com recursos provenientes de pessoas físicas e jurídicas, sem verbas públicas. Não entrarei no mérito de sua trajetória como ex-militar que comandou a Coluna Prestes, vinculou-se ao Partido Comunista e participou da sublevação de 1935, foi preso durante a ditadura do Estado Novo, tornou-se deputado constituinte após a redemocratização, teve seus direitos políticos cassados pela ditadura civil-militar de 1964, exilou-se na União Soviética, e, após a anistia, retornou ao Brasil, foi eleito presidente de honra do PDT, partido no qual permaneceu até sua morte, em 1990. Minha inquietação continua sendo o que se pode lembrar e o que se deve esquecer…

Em uma época de censura e autocensura, é preciso estar atento às motivações morais e políticas.

Caroline Silveira Bauer

Professora do curso de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde atua na graduação e na pós-graduação. Entre 2011 e 2013, trabalhou como consultora da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. É autora de diversas obras sobre a temática da ditadura civil-militar brasileira, integrando grupos de pesquisa e investigação nacionais e internacionais.