Ilustração: Bia Leme

Apologia ao crime, eis uma figura penal muito lembrada recentemente. Os discursos que motivaram o fechamento da exposição Queermuseu valeram-se de uma suposta justificativa jurídica: apologia ao crime de pedofilia.

Ainda que esse lamentável episódio já tenha sido tratado em outras colunas aqui no Dissenso.org, a equiparação entre arte e apologia de crime, de tão absurda, não poderia passar em branco.

Entre os chamados delitos contra a paz pública, o artigo 287 do Código Penal tipifica a conduta de fazer, publicamente, apologia de fato criminoso, ou de autor de crime.

Em sentido jurídico, caracterizam apologia as condutas de defesa, enaltecimento público da prática de outros crimes (ou das pessoas que os praticam) necessariamente previstos no Código Penal e nas Leis Penais Especiais, quando concretamente aptas a abalar o sentimento coletivo de paz que decorre do respeito às leis.

O sentido vulgar, vimos recentemente, pode ser um tanto distinto do jurídico. No episódio envolvendo a exposição Queermuseu, simples referências a elementos constitutivos de crimes foram tomadas como sinônimos de exaltação à pedofilia, independentemente do contexto artístico em que se apresentavam.

Sob a ótica do direito penal, há equívocos óbvios nessa equiparação. Não há subsunção do fato à norma, tanto de uma perspectiva objetiva quando de uma perspectiva subjetiva: nenhuma das obras continha mensagem objetiva em prol da prática de pedofilia ou em favor de pedófilo qualquer, assim como é uma sandice imaginar que houvesse, por parte de algum artista, intenção de promover uma defesa pública do cometimento de crimes. Também beira o delírio supor que, ao terem contato com as obras, os frequentadores da exposição tornar-se-iam pedófilos em potencial.

A apologia nunca esteve, portanto, no plano dos fatos, só nos olhos de quem viu ou ouviu dizer das obras de arte e não as compreendeu nem tolerou. Afinal, os crimes previstos nos artigos 240 e seguintes do Estatuto da Criança e do Adolescente se tipificam pelo envolvimento de crianças e adolescentes com efetivas práticas de sexo explícito e pornografia, nunca retratadas nem elogiadas ali, vale repetir.

Ao criminalizar determinados discursos por meio de tipos abertos, como o do artigo 287, o direito penal acaba por servir de pretexto à censura.

Para além de Queermuseu e de outros mais recentes acontecimentos em que a arte foi mal interpretada, o caso da “marcha da maconha” é um exemplo emblemático das distorções que se pode fazer a partir da plurissignificação da apologia ao crime.

No ano de 2008, a marcha – que pretendia reunir, no espaço público, pessoas que se manifestariam pela legalização do uso dessa substância – foi proibida pelo Poder Judiciário nas cidades de Curitiba, São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Brasília, Cuiabá, Salvador, João Pessoa e Fortaleza. Já em 2009, foi também proibida pelo Judiciário em Curitiba, São Paulo, Americana, Juiz de Fora, Goiânia, Salvador, Fortaleza e João Pessoa[1]. Em 2010 e em 2011, outras tantas proibições judiciais ocorreram pelo Brasil.

A suposta apologia ao uso ilícito da maconha esteve no cerne da motivação das proibições judiciais. No Tribunal de Justiça de São Paulo, para citar um único exemplo, a decisão do ano de 2011 foi justificada sob o argumento de que “o evento que se quer coibir não trata de um debate de ideias, apenas, mas de uma manifestação de uso público coletivo de maconha, presentes indícios de práticas delitivas no ato questionado, especialmente porque, por fim, favorecem a fomentação do tráfico ilícito de drogas.”[2]

Coube ao Supremo Tribunal Federal, também em 2011, brecar a censura judicial em curso. No julgamento da ADPF 187, decidiu-se aquilo que deveria ser óbvio: o artigo 287 do Código Penal deve receber interpretação conforme a Constituição Federal, não podendo servir de pretexto ao cerceamento da liberdade de expressão, do direito de reunião e do direito de petição.

Como pontuou o Ministro Celso de Mello, relator do caso, a proposta de descriminalização de determinado ilícito penal não se confunde com a instigação ou apologia à prática desse crime. Assim, ainda que a ideia abolicionista possa ser eventualmente considerada “estranha, extravagante, inaceitável ou perigosa”, não se pode impedir que seja externada publicamente.

Se deve haver tolerância em relação a discursos que propõem a abolição de crimes, o que dizer em relação à arte? É inacreditável que, seis anos após o julgamento da ADPF 187, a apologia ao crime possa, mais uma vez, servir de pretexto para a censura.

Não é difícil entender por que os mesmos grupos que enxergam apologia ao crime em obras de arte convivem tão bem com ideias como “bandido bom é bandido morto” e “o erro da ditadura foi torturar e não matar”. Vivemos tempos difíceis.

[1] Conforme noticia a petição inicial da ADPF 187, que tramitou no Supremo Tribunal Federal.

[2] Palavras do Desembargador Teodomiro Mendez, relator do mandado de segurança impetrado pelo Ministério Público do Estado de São Paulo para cassar o salvo-conduto antes concedido por juiz de primeiro grau aos participantes do ato público.